30 de agosto de 2023

O que é Consciência Racial?

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Sobre

Na terceira parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre o que é e como seria o desenvolvimento de uma consciência racial.

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Episódio

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Transcrição

PROJETO DE ASSIS

Episódio 3 – O que é Consciência Racial?

 

[Música]

Arlane: Quem é branco no Brasil?

Suzane: Tudo é raça no nosso país.

[Música]

 

Arlane: Depois dessas discussões bem levinhas que a gente teve.

Suzane: Nada acaloradas

Arlane: Nada acaloradas, depois de ter deixado aí algumas reflexões bem complexas para você desenvolver. A gente vai começar esse último episódio dessa primeira temporada tomando uma cervejinha porque vamos estudar para brindar.

[Todas] Saúde Vida Longa Vida longa.

Arlane: Vida longa para a gente conseguir digerir o restante do episódio.

Mariana: A gente é ótimas garotas propagandas, gente.

Suzane: Exato, patrocina.

Mariana: Nossa, que cerveja será que Machado de Assis bebia? Será que Machado de Assia bebia cerveja?

Suzane:  Ah, mas com certeza.

Arlane: Ah, ele era tão legal devia beber cerveja.

Mariana: Já pensou.

Arlane: Hum também foi depois que eu cresci que eu aprendi que Machado de Assis foi funcionário público. Vocês sabem vocês sabem disso agora? E parte do trabalho dele teve relação com a Lei do Ventre Livre, correto? Se eu não engano é isso porque acho que tinha em algum momento as pessoas escravizadas recorriam à justiça para fazer valer a Lei do Ventre-Livre. Gente, se eu tiver errando aqui o nome da lei, peço desculpas, a gente coloca uma nota de correção no site,  mas, então alguém ali do setor público tinha que trabalhar, investigar e tomar alguma decisão, no final das contas, se aquela pessoa escravizada se encaixava ali na lei aí do Ventre Livre ou não. Ora, ora, ora, o senhor Machado de Assis estava envolvido nesses processos. Olha que coisa maravilhosa, outra coisa é depois também de grande, a gente estuda sobre a época da Abolição ali sobre o 13 de Maio de 1888 e tem fotos registros do Machado nas ruas do Rio de Janeiro, nas festas, celebrando, comemorando. Eu falo gente por que não mostra essas coisas pra gente no ensino médio, quando a gente tem que ler Machado de Assis isso é uma coisa extremamente grandiosa, além da principal é do fato do Machado ter sido um homem negro, assim, como que não mostram isso pra gente, por que que não mostram isso pra gente. Fico, enfim, mas, à medida que eu conheci isso fiquei muito indignada, mas também muito feliz porque poxa que bom é descobrir isso sobre uma das maiores referências que a gente tem.

Suzane: E curiosamente eu lembro que quando eu comecei a estudar literatura, quando eu entrei na faculdade de história, era senso comum dizer que Machado de Assis foi um homem que não se posicionava em relação à escravidão.

Arlane: Olha!

Mariana: Não basta apagar.

Suzane: Era senso comum porque usavam as obras mais clássicas dele como Dom Casmurro, Memória póstuma para dizer: viu, como ele era totalmente alheio. Eu falo: gente, vocês não estavam… crônicas, gente, atuação sabe é curioso né? E, não à toa digamos.

Mariana:  Fico pensando, assim, você historiadora, você acompanha sua obra, suas coisas, eu suponho que você quer falar sobre tudo, você pode falar sobre tudo e aí no futuro alguém vai pegar e vai falar que você não falou sobre o racismo porque em algum momento.  São as estratégias infinitas, assim, sabe, então, a Arlane vai fazer um podcast amanhã sobre jujuba, gente. Arlane se vocês não seguem, sigam Arlane nas redes sociais, ela tem uma corg. Eu falei certo, então?

Arlane: Isso.

Mariana: Por que a Arlane gosta, quantos graus de desumanização e despotencialização, sabe gente? É realmente, assim, é, mas, não vencerão, não vencerão.

Suzane: Não, porque cá estamos,

Mariana: Cá estamos com Machado de Assis tá preto, aqui estamos vendo ele.

Suzane: Cá estamos, Cá estamos com Projeto de Assis, isso mesmo. Bom, senhoras pra gente começar esse episódio final, eu quero ler um outro poema de uma outra mulher negra Luciene Nascimento, esse poema eu vim conhecer através da Liliane Rocha e da Drª Fernanda que trabalha com ela, a gente foi recentemente no relançamento do livro da Liliane que agora se chama “Como ser uma liderança inclusiva”. Espero que tenha acertado o título. E, nesse evento de lançamento do livro, Dra Fernanda declamou esse poema ela, ela, eu vou ler tá aqui o poema. Ela declamou esse poema foi uma das coisas mais poderosas que eu vi nos últimos tempos, então, para compartilhar com vocês também, inclusive, estou aqui com o livro. Esse daqui é o livro da Luciene Nascimento se chama “Tudo nela é de se amar”, muito indicamos, com certeza. Vou ler aqui pra agente conhecer um pouquinho desse poema, ele é um pouquinho longo tá, ele se chama “sociedade é construção e o racismo é o cimento”. Então, pega a sua cervejinha aí também para você acompanhar e digerindo as palavras da Luciene Nascimento. Começa:

Nunca esqueci Soninha Freitas palestrando

Em bê-a-bá pra tentar explicar a complexidade do problema do racismo no Brasil. Ela dizia algo como:

Bom exemplo é a construção

Pense em paredes de uma residência

Tijolos formam a estrutura

Com o concreto arquitetura

Ganha formato e aparência

Sociedade é construção e o racismo é o cimento

Componente estrutural

Formador fundamental

Do interior e do acabamento

Nessa fala eu acrescento:

Nossa estrutura social foi forjada no sofrimento

Houve esforço intencional

Atuante, fraudulento,

Apoio internacional à tese do branqueamento

Descolorindo e repintando

Tinta de sangue e caneta

Queremos desconstrução

Porque tentar sugar cimento

Sem romper essa estrutura

É como pôr atadura

Em anos de adoecimento

Educação

Educação rima com coisas muito simples

Rima com escolas falando das coisas nossas

Mas não só em novembro

Rima com aprender que a questão racial

É esforço coletivo,

Que ter medo de polícia não é por acaso

Que a propaganda não é inocente,

Que se a senhora preta não te olha nos olhos pra

Falar com você, Doutor, é responsabilidade

Sua educar seus filhos pra respeitar os meus

Filhos para que as próximas senhoras pretas

Não tenham esse peso no olhar

Sociedade é construção e o racismo é o cimento

Componente estrutural

Formadora fundamental

Do interior e do acabamento

Tem que haver desconstrução

Porque tentar sugar cimento

Sem romper a estrutura

É como pôr atadura

Em anos de adoecimento

Conserto é planejamento,

Consciência e postura,

Análise de conjuntura

Vontade e conhecimento

 

[Som de assobio]

Arlane: Sim, Luciene Nascimento.

[Risadas]

Mariana: Uau!

Arlane: que, que, que lindo que forte, assim que que poderoso esse poema, me marcou bastante.

Mariana: Amei

Arlane: muito, muito conectado, inclusive, a tudo que a gente tá conversando aqui. Bom, o que vocês acham que é consciência racial?

Suzane: Par ou ímpar para ver quem começa? É, olha, é uma pergunta bem difícil porque eu acho que, eu não acredito que exista uma consciência racial, eu acredito que existam consciências raciais, no sentido, de que é possível ter várias abordagens, que confluem para que você tenha essa consciência, várias abordagens são possíveis, quando eu falo de consciência racial, eu posso falar, por exemplo, que é uma consciência racial para negro, por exemplo, a minha mãe, mulher preta retinta, tudo mais, ela conseguiu uma consciência racial a partir do momento que ela entendeu que o dia que pararam a filha dela que era diplomada que blá blá blá blá blá e trataram ela que nem um lixo, pararam a filha dela, a polícia parou trataram ela que nem um lixo, no dia que a segunda filha dela, ela sofreu violência obstétrica, por enquanto estava grávida, estava lá tendo seu filho, foi quando ela, foi percebendo que cada uma dessas coisas tinha um elemento em comum e esse elemento era pele preta, foi quando ela percebeu pela primeira vez que ela tinha abertura para falar sobre as experiências dela, quando ela era criança, quando ela era adolescente e que ninguém ia rir ninguém acha graça, porque ela sempre falava de como quando ela era criança chamavam de macaca, grudava um chiclete, chiclete, no cabelo dela porque era um cabelo crespo do tipo 4c. Joguem no Google, depois tá tipos de cabelo, cabelo de mamãe 4c, pois bem do tipo 4c de como colavam o cabelo dela, de como humilhavam ela e ela sempre contava isso como se fosse uma piada, teve um dia que ela reparou que não tinha graça e aí ela foi entendendo que ela era uma mulher preta, mãe de mulheres pretas também que estavam ali lidando com isso, lidando com a vida, ela conseguiu adquirir uma consciência racial e ela conseguiu pensar na própria vida, pensar na própria família por um outro viés e isso assim é perceptível na cutes dela, no olhar, no brilho do olho, o quanto a transformou. Então, eu acho que há essa consciência racial para quando a gente fala de pessoas negras, mas a gente tem que falar também de pessoas brancas e consciência racial para pessoa branca ao meu ver e, eu acho que essa é uma das possibilidades, não é a única, é você entender que e aí vai ser polêmico. Eu sei que você não vai gostar, mas você entender que você é racista.  É, não, Suzane, claro que eu não sou porque eu sou muito legal, como eu falei eu já namorei uma negra, já blá blá blá. Então, a questão é essa, quando você é uma pessoa branca e você tem consciência racial, você entende que você foi criado forjado, você foi parte dessa construção cimentada através do racismo, o modo como você vê as pessoas é mediado por raça, o modo como você entende o mundo é mediado por raça, e é mediado por uma hierarquia racial, você faz parte disso, você compartilha deste universo, você, muito provavelmente, tem pensamentos e lógicas racistas dentro de você, tendo essa consciência você tem a possibilidade de rever coisas, você tem a possibilidade de se rever, quando você tenta e entra nesse processo de negação, onde o racista é o vilão da Disney, sabe o vilão da Disney, ele tem unhas cumpridas, ele está atrás da moita, ele é super malvado horroroso, blá blá blá blá blá, quando você vê  assim, você nunca vai se identificar e se você não se identifica você não se coloca como uma pessoa que é capaz de reproduzir, é capaz de ferir e é capaz de impedir o avanço de pessoas negras. Então, quando eu falo ou quando eu gosto de falar e pedir consciência racial para pessoas brancas, eu tô falando do processo de entender que o racismo, ele constrói a nossa sociedade, você que é branco, provavelmente, é uma pessoa racista e a partir dessa consciência, não é para você ir pra cama chorar, não é para você dar chicotada nas suas costas, não é para você se sentir culpado, não é para você procurar o seu amigo negro e falar a me perdoa, não tem nada a ver com isso, isso é para você, realmente, olhar ao seu redor, olhar a si mesmo e tentar pensar: Legal, fui criado desse jeito, o que, que eu posso fazer de diferente agora para que exatamente os seus filhos, os meus filhos possam ter uma coisa de diferente em relação a isso, então, acho que essas são duas possibilidades que eu creio que são uma, algumas, entre várias, eu não acredito em uma única consciência racial.

Mariana: Que demais isso, que você falou assim é, eu às vezes, nossa, você acabou de resolver uma coisa aqui para mim, obrigada, a minha próxima cerveja da Suzane.

Arlane: mostra, mostra aquele sinalzinho, assim, de carregando, carregando.

Mariana: que importante Suzane porque eu concordo totalmente sobre ter várias formas e acho que só agora com você falando isso, eu pensei nisso, porque eu fico é pensando. Bom, primeiro concordo totalmente, concordo totalmente, assim, eu, você até, você foi generosa, você falou: se você uma pessoa branca, você, provavelmente, é racista.

Suzane: eu sou fofa às vezes, né?

Mariana: É, você foi, você foi, eu acho que é invariavelmente, é muito constitutivo das vantagens que você tira, da ideia de que você é especial e aí claro, se você é rico vai ter uma conotação, se você é classe média vai ter outra, se você tá na periferia é outra, mas você tá falando sobre várias consciências e eu tô aqui pensando mesmo, porque às vezes eu fico pensando, hoje vindo para cá pensando, mas por que tipo, por que tá atrelada essa questão racial, e aí eu fico pensando nas pessoas que dizem, então, por exemplo, lá tem uma intelectual branca americana que vai dizer que as pessoas brancas perdem muito ao viver nesse mundo da mediocridade, Ok concordo, e tem ai a Lia Vainer Schucman, que vai cada vez mais numa pegada mais das famílias e tal tem Sueli Carneiro, que vai, gente, são n’s formas, então, eu, às vezes, fico pensando, assim, é por que, eu sei o meu porquê, mas eu acabei de me dar conta que, o que eu fico matutando não é porque eu não sei o meu porquê, mas a ideia é que tenha um porquê só e de porque eu tô falando de consciência, faz muito sentido, assim, então, o meu pai que é uma pessoa branca e quando a gente conversa sobre racismo e ele vai lá ativar as memórias de juventude dele, de ser uma pessoa que morava na periferia, mas entende que o fato dele ser ruivo e muito branco, porque vem de uma mistura, tinha uma relação diferente com o amigo dele, que ele chamava de negão, e às vezes, vem fala essa coisa: Ah mas chamava de negão, isso não racismo. é uma coisa. A minha mãe, que hoje conversa comigo e minha mãe, então, uma pessoa uma coisa com traços mais europeus e tal e, às vezes, eu tô conversando com ela e ela vai me contar uma história, ela começa aí você não sabe conheci uma moça aí, eu falo assim ela é branca ou ela é preta, ai ela:  – você só pensa nisso. Eu falo: não só tô perguntando, porque, provavelmente, para história vai, eu só quero saber, em viés de eu perguntar, se ela era alta, se ela baixa, não é tão simples assim, porque provavelmente a história vai muito diferente, se ela era. Então, o meu ponto é tem tantas formas de ver isso, que eu acho que a gente pensa, que realmente que tem uma, eu acho que até hoje, eu tava pensando que tinha uma que era mais acabada que as outras.

Suzane: A grande iluminação.

Mariana: Isso tá me fazendo aqui pensar, que isso tem a ver com a ideia de que tem um jeito de ser, eu acho que tem coisas em comum, que a gente pode costurar, assim, com as vivências de quem tem e pele preta retinta, de quem tem uma pele, que é uma pessoa negra de traços claros, com certeza, tem coisas comuns, mas como é muito constitutivo da nossa vida vai ter N histórias a respeito, e eu acho que isso é muito rico. Gente, me liguem para falar sobre branquitude não vão encher o saco das amigas pretas de vocês, já vai para um lugar, mas quando às vezes, as poucas pessoas que querem conversar comigo sobre isso, são poucas pessoas, e eu fico às vezes escutando as histórias de vida, de onde vem ter pensado sobre isso é fascinante mesmo, mas, eu acho que assim é isso, qualquer que seja o seu motivo para pensar, qualquer coisa que te trouxe até aqui para tá assistindo esse vídeo, é legal, as histórias são bacanas, as nossas vidas são múltiplas e a gente pode conviver com coisas em comum e coisas particulares, com a história que cada um vai ter, e aí para terminar só queria, queria contar porque desde a hora que você perguntou para mim tem a ver, você falou deve ser difícil, você contou a história da sua mãe e tal é de quando a Sueli Carneiro, você estava comentando no outro episódio sobre as empresas, as grandes empresas, que contratam intelectuais e pensadoras que são negras, e que é não fazem jus, muitas vezes a isso, eu queria evocar aqui a história com Sueli Carneiro, gentilmente, generosamente, pacientemente, aceitou o convite de uma grande empresa, da qual eu estava ali no contexto e ela foi falar sobre, sobre racismo, sobre, gente, com certeza, o tema foi esse, provavelmente novembro e ela foi a primeira pessoa, eu tinha já 30 anos, como é a média das pessoas brancas que se dão ao luxo de viver, às vezes a vida inteira sem pensar nisso, e ela olhou no meu olho e no olho das pessoas brancas que estavam ali e falou mesmo que você não tenha assinado o contrato, que determinou que pessoas brancas teriam vantagem em detrimento das pessoas negras, você não estava lá no dia que esse contrato foi assinado, que esse essa regra foi imposta, mas você se olhando, no meu olho, se beneficia até hoje disso e isso foi, se eu tivesse tomado uma voa no meu útero, não teria doído tanto, foi fisicamente doloroso e certamente eu fiquei algumas noites sem dormir, mas eu considero que eu nasci de novo nesse dia, eu considero que eu nasci de novo nesse dia, e aí eu fiquei pensando você, eu queria, você não precisa da minha confirmação, mas eu queria dizer que é isso mesmo, você se sente enganado, eu, quando daí, eu comecei, peguei esse soco no estômago e comecei a olhar a falar assim, caramba história esse conto de fadas, que me contaram não tem um outro lado e esse outro lado, por mais que possa doer fisicamente no momento, me mostrou uma outra coisa sabe, até então o Brasil para mim era uma coisa qualquer, que não sabia por que eu ainda não tinha ido embora daqui como tantos amigos meus foram e, a partir desse dia a despeito de tudo, eu acho que foi dia, que eu comecei a acreditar, provavelmente, utopicamente, mas espero que não que pode ter uma outra coisa, então, assim ficar lá em posição fetal com culpa e tal, com certeza,  porque não vai adiantar nada, não vai resolver nada para ninguém, e assim dá para continuar e tem tanto, tem coisa eu pode ter coisa tão melhor depois disso, assim, dessa mediocridade, dessa coisa, então, acho que a consciência é, para mim, o que eu estava tentando dizer que existem muitas, mas para mim é uma luz assim que de que, de que guia e fala assim: gente, tem tanta coisa maravilhosa, que não foi contada, tem tantas formas de ser, quando a gente escuta Sueli Carneiro, Cida Bento, Ailton Krenak, Alessandra Munduruku falando,  Nego Bispo, você fala caramba, tem tantas coisas, tem tantas existências possíveis e a gente ficou presa nessa que é só mais uma, infelizmente, é tão pobre, eu não sei para mim, renova demais assim, me ilumina mesmo.

Arlane: é isso, tem uma fala sua de uma palestra que a gente fez e tinha uma pessoa branca ali que estava bastante, no momento de bastante confronto, que é estava naquela, naquele conjunto de reações, ah porque eu sou uma boa pessoa, não sei o que e tal, você respondeu o seguinte, então, mas, essa conversa aqui é sobre uma estrutura muito maior do que nós e que vem muito antes de nós, achei que isso foi bastante, assim, sucinto porque, inclusive, fez aquela pessoa naquele momento ficar mais quieta.

Mariana: que, é o que você fala sobre estrutura, que é o que Luciene fala sobre concreto.

Arlane: sim, sobre estrutura. Não, não, é.

Mariana: Você me ensinou.

Arlane: Sim, não, não é sobre quando a gente fala de consciência racial, ela vai muito, muito, muito, além do aspecto individual, do aspecto de como a gente se vê no mundo. E aí, o que eu queria dizer, por exemplo, para uma pessoa branca, que esteja nos ouvindo, nos assistindo, é que consciência, a primeira coisa, primeira característica da consciência racial, é você entender que você não é um indivíduo, você não é um indivíduo, você faz parte de uma sociedade, você faz parte de uma estrutura, que é muito maior do que você e que vem de muito antes de você, quer você queira, quer você não queira, quer você reconheça, quer você não reconheça, você não é um indivíduo, as coisas que você tem, as suas conquistas, as suas relações, o lugar que você ocupa na sociedade, é também sobre o seu esforço, não vou, não vou aqui dizer que você nunca se esforçou porque essa é uma grande questão, ah, mas, nossa e o meu esforço, sim tem o seu esforço individual, não duvido disso, tem os nossos esforços individuais, e em somatória numa proporção muito maior, tem as heranças que a gente carrega na nossa sociedade, só o fato de, por exemplo, você não ter o cabelo de uma pessoa negra, um cabelo crespo, isso já te, é isso já é um benefício, por exemplo, que você tem, vou usar uma palavra bastante comum nos dias atuais, mas que exemplifica, que ilustra muito isso, é um privilégio que você tem de não ser por exemplo declinado ou declinada de uma entrevista de emprego ou desrespeitado em alguma situação ou, por exemplo, você está caminhando no Parque Ibirapuera, como eu estive um dia e uma mulher, que eu nunca vi, não sei quem é, simplesmente, chegou e começou a tocar no meu cabelo do absoluto nada, então, assim, a primeira característica da consciência racial, na minha visão, é essa, é você entender que você não é um indivíduo, você está você faz parte de uma estrutura muito maior. Concordo com Suzane e com Mariana que há várias, várias formas de desenvolver essa consciência, vários tipos de consciência, cada pessoa tem a sua trajetória, cada pessoa tem a forma de aprender, a Mariana foi confrontada, por ninguém, menos que Sueli Carneiro.

Mariana: Obrigada, Sueli Carneiro, eu vivo todos os dias tentando honrar Sueli Carneiro, Cida Bento, Arlane, Suzane entre outros.

Arlane: Talvez você não tenha a sorte de ser confrontado ou confrontada por Sueli Carneiro e mas, eu acho que, no final das contas, o resultado da consciência racial, ele é um só, gente, porque assim, se você é uma pessoa que diz que se interessa pela temática, que diz que lê sobre a temática ou que assiste as palestras, minhas da Suzane ou nossas, ou que tá vendo esse podcast ou que já ouviu outros podcasts como Projeto Querino, por exemplo, ou enfim, se você é uma pessoa que de alguma forma se relaciona com esse tema e você ainda não se sente incomodado ou incomodada tá faltando alguma coisa, você ainda de fato não chegou a ponto de desenvolver a sua consciência social, porque para mim isso o resultado da consciência racial do desenvolvimento constante da consciência racial, é você chegar ao ponto de estar num incômodo insuportável, não tem como, gente, você olhar para nossa sociedade, você começar a enxergar as nuances da nossa realidade, entender como de fato se dá a nossa realidade de fato, como se dão as relações raciais, a hierarquia racial, a desigualdade racial no nosso país e você não ficar insuportavelmente incomodado ou incomodada, não tem outro resultado, não tem outro resultado, então, se você está dentro da sua organização, por exemplo, ah você ainda tem questões, aí com ação afirmativa, ah não, mas porque tá tudo bem investir num programa de desenvolvimento, mas, assim no final das contas, o que importa é o mérito individual, você ainda não entendeu, em resumo, você ainda não entendeu, você ainda não de fato desenvolveu uma consciência mais aprofundada racial, acho que Suzane e Mariana deram aqui explicações bem, assim, é, abertas e bem, bem esmiuçadas sobre isso, mas é isso assim não importa qual caminho que você tome, não importa qual livro que você leia, pode ser o Silvio de Almeida, pode ser da Djamila Ribeiro, pode ser quem for, o resultado ele é um, um só, é um incômodo insuportável.

Suzane: Não, só uma um adendo muito básico uma historinha uma anedota. Eu morava em outra cidade da região metropolitana de São Paulo e aí para ir pra minha cidade, eu precisava passar por uma catraca, onde eu passava um bilhete e era muito comum esse bilhete desmagnetizar, aí quando eu passava o bilhete sempre tem um guarda próximo à catraca e desmagnetizar, ele mandava eu desci as escadas e novamente na bilheteria trocar, o bilhete que desmagnetizou, era comum sempre acontecia, eu odiava porque eu estava correndo para pegar o ônibus e a acontecia, pois bem um dia eu estava com um grande amigo meu, branco, e aí ele foi passar e o bilhete dele desmagnetizou, o guarda, outro guarda não era o de sempre, sempre mudava, o guarda olhou para ele e falou pode passar, deixou ele passar e na hora, eu falei caramba, que sorte. Ele olhou para minha cara e falou sorte, ele só fez assim [apontando para a cor da pele], eu olhei para ele, eu olhei para mim, eu falei, oh fuck my god, ele tem razão, eu fiquei chocada, porque eu juro, eu normalize aquela coisa.

Mariana: A catraca.

Suzane: Exato, eu normalize, eu voltar e quando eu vi a pessoa branca fazer aquilo e ser liberada, não precisava descer para trocar, para provar que pagou, eu olhei e falei: nossa que sorte a sua, porque eu não tenho a mesma sorte. Só que ele e eu acho que ele foi a primeira pessoa branca que eu conheci que eu falei assim: esse cara tem consciência racial, velho. Eu acho que nunca antes, eu tinha conhecido alguém. Ele olhou para mim e falou sorte, ele mostrou a próprio tom de pele, porque isso é uma das coisas complicadas, muitas vezes, o que você chama de mérito, o que você chama de sorte tem a ver com a tua cor, tem a ver com a tua branquitude, entender isso, questionar isso é doloroso, porque é muito legal, você falar, eu mereci, eu tive sorte que dia legal, olha como.

Mariana: É muito legal as catracas se abrirem para você.

Suzane: Exato! É maravilhoso, você não precisa descer as escadas, passar pela fila novamente trocar o seu cartão para provar que você pagou alguma coisa, é muito legal, você, simplesmente, resumir tudo em sorte e eu acho que esse é um dos desafios da consciência racial, você começar a questionar a sua sorte, começar a questionar o que você sempre chama de mérito, o que você sempre chamou de ah essas coisas legais que acontecem comigo, sabe, eu acho que aí também é uma boa, eu sempre lembro dessa história.

Arlane: Perfeito, perfeito, vou começar, vou começar, questiona na sua sorte perfeito, é bem por aí mesmo é bem por aí mesmo bom. Para quem ainda, está conosco para quem não fugiu, não saiu correndo.

Mariana: não se escondeu dentro da …

Arlabe: não se escondeu.

Mariana: na mofada, do, da poltrona.

Arlane: Continue conosco que agora a gente vai ler vou compartilhar com vocês uma crônica de Machado de Assis. O Projeto de Assis em homenagem ao nome de Machado, em homenagem ao obra de Machado, a gente estava aqui conversando sobre ele também, enfim, e inclusive, assim tem um pequeno trecho da minha vida, sendo uma pessoa negra sempre acostumada a ser única ou quase única nos lugares, sou formada na Universidade Federal de Goiás, entrei lá já com as cotas universitárias vigentes, mas ainda assim, eu no meu curso de administração de 40 pessoas, tinha talvez quatro ou cinco pessoas negras comigo, mas assim nada se compara ou nada se comparou a primeira vez que eu visitei a Faria Lima, para você que não conhece São Paulo.

Suzane: ih rapaz.

Arlane: para você que não conhece São Paulo, aí já é para você que não conhece São Paulo ou ainda não visitou a Faria Lima.

Mariana: Para você que não sabe que é branquitude, aura do campeonato.

Arlane: Eu costumo chamar a Faria Lima de A Nova Paulista, porque é como se, a Faria Lima é como se fosse o Grande centro econômico do Brasil, é a avenida, na qual estão a sede de grandes empresas nacionais e internacionais, ou seja, tem uma grande concentração de poder e capital econômico ali, político ali também e a primeira vez que eu fui na Faria Lima, eu fui trabalhar numa empresa cuja sede era lá, eu nunca vou me esquecer, gente, a primeira vez que eu entrei no andar daquela empresa tinha cerca de uma centena de pessoas naquele andar, olhei para um lado, olhei pro outro, eu era a única pessoa negra, eu era a única pessoa negra naquele andar, fiquei um uns segundos ali meio parada e na hora que eu olho para as laterais, eu encontro outras mulheres negras estas uniformizadas, no caso, sendo as zeladoras daquele ambiente, daquele prédio, então, assim tem um grande aprendizado aí, para mim, esse foi um grande marco na minha vida, vida, na minha trajetória de desenvolvimento de consciência racial e nesse processo uma das coisas, que eu fui aprendendo mais e que me impulsionou nesse desenvolvimento, foi conhecer mais sobre Machado de Assis, sobre as coisas que a gente estava conversando aqui no começo, inclusive, num período pré-pandemia, eu fiz um curso livre na USP presencial com um professor especialista em Machado de Assis e a minha vontade durante as aulas era de chorar porque assim era isso, ele contando todas essas coisas, todas as coisas que o Machado foi, todas as coisas que o Machado fez que a gente nunca, nunca aprende, nunca soube e nesse curso eu tive o contato, então, com uma crônica que o Machado publicou na Gazeta de Notícias, no Jornal Gazeta de Notícias, no dia 19 de maio de 1888, essa era a próxima data de publicação disponível para o  Machado depois do dia 13 de Maio, depois da Abolição, então, se você ainda, por exemplo, é da pessoa que acredita que: Ah, o Machado nunca se posicionou politicamente ou nunca falou sobre questões raciais na sua obra etc, think again, pense de novo, sabe, porque essa, esse, por exemplo, essa, por exemplo, é uma das crônicas é uma das publicações do Machado que, justamente, na forma ácida crítica e sútil, mas não sútil dele, ele fala pra gente sobre a questão racial no Brasil, vamos lá:

Bons dias!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…

– Oh! meu senhô! fico.

– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…

– Artura não qué dizê nada, não, senhô…

– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites.

 

[Pausa]

 

Arlane: Machado.

Suzane: Só um parênteses básico, ele menciona que Pancrácio tem assim mais ou menos uns 18 anos e que já tá maior que ele, se a gente seguir um pouquinho as datas, 1871 sai a Lei do Ventre Livre, ou seja, Pancrácio tendo essa idade mais ou menos, ele já deveria ter sido livre há muitos e muitos anos, então, fica aí a qualidade de todo o debate e dessa ironia perfeita, que foi feita, e que realmente representa muito do que aconteceu na nossa época e que acontece até hoje.

Arlane: Muitas nuances essa crônica.

Suzane: Oh!

Arlane: Não é para qualquer mente.

Mariana: Se alguém ficou na dúvida, não deveria ficar na dúvida, o que é antirracismo performático, depois que Suzane escreveu perfeitamente, mas, se alguém ainda ficou na dúvida tá aí.

Arlane:  Muita. Bom.

Mariana: Muito bom.

Arlane: Olha, a gente deixa esse último, essa última intervenção para você refletir a respeito fico super à vontade, se você é uma pessoa branca para ligar pra Mariana e trocar ideias com ela ou para contatar eu e a para nos contratar, vai estar disponível no nosso site, inclusive.

Suzane: Fazemos festas.

Arlane: Contato para nos levar, pra gente conversar, pra gente levar essa conversa, pra organização que você estiver com este nível de qualidade e de profundidade, mas, assim o convite final fica para que não, não, não deixe essa conversa para aqui, não deixe esse tema para aqui, se esse foi o seu primeiro contato com a pauta étnico-racial, que seja o primeiro de muitos, que venha aí um aprofundamento, interesse até você chegar ao ponto e continuar no ponto de um incômodo insuportável, porque esse é o nosso objetivo e se você nos acompanhou até aqui mesmo que de forma pausada, mesmo que com algumas cervejas, não tem problema, muito obrigada! Eu quero finalizar os meus agradecimentos agradecendo também a Rebeka Cavalcante que fez a nossa analista de pesquisa e comunicação na AGC, que fez pesquisa, que fez roteiro, que fez toda essa fundamentação que a gente utilizou aqui nesses episódios. Agradeço também Ieda Camine que está aqui que cuida de todas as questões operacionais de todos os detalhes para que tudo saia impecável e novamente, agradecer a Suzane Jardim e a Mariana Macario, grandes referências, especialistas na área, que me deram a honra de ceder seu tempo, enfim, seu conhecimento, sua expertise pra gente vir aqui conversar desse tema tão importante.

Suzane: Foi um prazer! Adorei e é isso questionem a sorte de vocês e isso.

Mariana: Obrigada!

Arlane: Até a próxima.

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Referências

NASCIMENTO, L. Sociedade é construção (e o racismo é o cimento). Tudo nela é de se amar. Rio de Janeiro: Estação Brasil. 2021

SAAD, L. Eu e a supremacia branca: como reconhecer seu privilégio, combater o racismo e mudar o mundo. Hachette Reino Unido, 2020.

DIANGELO, R. Não Basta Não ser racista Sejamos Antirracista. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Faro Editorial, 2018.

SCHUCMAN, L. V (org). Branquitude: Diálogos sobre racismo e antirracismo. São Paulo: Fósforo. 2023.

A fina ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravatura. Portal Geledés. 14 mai. 2013. Disponível em: https://www.geledes.org.br/fina-ironia-de-machado-de-assis-sobre-abolicao-da-escravatura/

Pessoas brancas têm culpa?

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Sobre

Na segunda parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre as reações das pessoas brancas diante da temática racial e sobre que postura elas deveriam adotar nesta jornada.

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Episódio

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Transcrição

[Música]

Arlane: Quem é branco no Brasil?

Suzane: Tudo é raça no nosso país.

[Música]

 

Arlane: Quero começar esse episódio fazendo mais um momento didático, aqui, com você que está nos assistindo ou nos ouvindo. A gente está falando bastante sobre temática racial, sobre o que é ser branco, ser negro no país. Mas, no geral, quando a gente se senta numa mesa de bar para conversar ou quando a gente tá ali na mesa de jantar e de almoço com a família, a gente tem um pouco de receio de falar essas palavras. Quando alguém fala a palavra raça, racismo assusta. As pessoas começam a se entreolhar meio que com medo. Falar branco, falar negro também gera algum tipo de receio, de medo. O nosso convite é para que você se esforce cada vez mais ou para que você se desafie cada vez mais a não ter medo dessas palavras. Raça surgiu, sim, como um conceito entre aspas biológico, entre aspas científico, que visava sim dar uma noção de que os grupos sociais eram divididos no mundo entre características biológicas que significavam uma relação de inferioridade, de superioridade entre elas. Porém, esse conceito e essa percepção, essa noção caiu por terra, por isso que o científico entre aspas, porém raça continua como uma palavra válida, digamos assim, no aspecto social como um conceito social nós continuamos vivendo numa sociedade que é dividida por raças, que tem grupos sociais que são racialmente identificados e separados entre si. Racismo, então, é um fenômeno que explica a dinâmica, a estrutura das relações entre esses grupos, entre as raças da nossa sociedade. Então, não é uma palavra pra gente ter medo. Não é uma palavra pra gente temer. Na verdade, é uma palavra pra gente procurar cada vez mais conhecer. Antes da gente seguir, eu quero sugerir que você dê uma pausa nesse episódio entre lá no nosso site www.projetodeassis.com.br e faça o Teste do Conforto Racial. Ali tem algumas perguntas relacionadas ao nosso dia a dia, como que a gente se comporta, como que as outras pessoas se comportam conosco, interagem conosco e algumas reflexões sugeridas, a partir dessas questões. No final, a gente deixa ali um texto para você com algumas sugestões de leitura de aprofundamento, de provocações, de reflexões.  Justamente pra gente sair um pouco do lugar comum, digamos assim, dessa conversa e de ir derrubando um pouquinho os tabus, quanto a conversa sobre raça e sobre ser uma pessoa branca no Brasil. Depois compartilhe com a gente nas redes como é que foi o seu resultado. Bom, vou partir aqui então para as perguntas pra Mariana e pra Suzane. Vou abrir com o poema de Fernanda Bastos que eu conheci através de Sueli Carneiro. Então, olha só Fernanda Bastos:

 

Aluga-se uma preta

para ama

com muito bom leite, de 40 dias

e de primeiro parto,

é muito carinhosa,

não tem vício algum

e é muito sadia

 

Aluga-se uma preta

para ama

e também se vende a cria.

 

Aluga-se uma preta

de braços fortes e

de abundante leite

seja cativa ou liberta

trabalhadora de noite e dia

 

Aluga-se uma preta

sem filho e que saiba cuidar de menina

enquanto cuida de sinhá

á roda os senhores levam toda sua cria

 

Aluga-se preta

ama-seca muito jeitosa

o leite estancou no peito

assim como os afetos que nos cuidados ela nutria

 

Não aluga-se uma preta

caiu fraca, sem leite

sífilis e tuberculose ela tinha

 

Cobra-se o ordenado da preta

mais humilhação, violência e vilania

O senhor enganado era quem exigia.

 

 

Bom! Depois deste marcante poema quero perguntar para vocês, a partir da conversa que a gente teve nesse primeiro episódio, como que, na opinião e na expertise de vocês, a pessoa branca deveria enxergar a questão racial no Brasil? E Como a pessoa branca deveria se enxergar na questão racial do Brasil?

 

Mariana: Acho que a primeira coisa é se enxergue sabe, tome tento. É difícil até falar depois desse dessa evocação assim. Mas, eu acho que a primeira coisa que eu diria é apenas pare. Eu acho que a gente precisa parar. Não no sentido de se paralisar, mas precisa parar mesmo, porque as nossas práticas. As construções cotidianas que a gente faz são infelizmente muito marcadas por essa hierarquia, que fundou o nosso país, e eu acho que quanto antes. Eu acho não acredito que quanto antes a gente se equipa com maneiras de lidar com isso. Mais cedo a gente consegue começar a construir as ferramentas para desinternalizar. Eu acho que o lugar da pessoa branca não fugir dessa questão. Só encarrando essa de frente, a gente começa conseguir pensar em formas. Acho que tem um lado muito, não que seja fácil, mas tem um lado muito potente assim. Eu acho que essas duas coisas convivem para mim: a dificuldade que te paralisa, quando você admite as coisas, que pode paralisar no primeiro momento, mas também de olhar em volta. Eu acho que esse poema mostra o quanto do que a gente é, foi construído pela contribuição negra, mas uma contribuição que foi explorada, mas também fico sempre tentando pensar em formas de celebrar essa potência, de celebrar essa coisa linda. Então, tô tentando não me alongar, mas é difícil, mas para mim é também assim celebrando quanta potência existe hoje para mim é muito nítido que tudo de mais potente que pode fazer o Brasil ser melhor vem do que as mulheres negras estão fazendo liderando. Sueli Carneiro tudo que eu aprendi com ela, que eu aprendo com você, que eu aprendo com você. Tem muita coisa acontecendo. É difícil, mas também não é difícil. Eu acho que é se recolher um pouco, um pouco não bastante, num lugar de humildade, fica um pouco ali e depois segue, procurando um outro caminho só. Esse caminho também é muito. A branquitude é muito bosta, gente.

 

Suzane: Esse é o resumo.

 

Mariana: É um lugar de bosta. Eu não sei como é que depois a pessoa vai fazer, Suzane, para lidar assim, mas tem hora que só essas palavras, assim, conseguem expressar. É ruim demais é uma vivência muito pobre, é uma vivência, é, assim, às vezes é até difícil dar nome pra as coisas que eu olho assim e vejo. Nossa, porque ela cria uma mediocridade nas pessoas, que se valem disso, que é terrível e essa mediocridade o senhor enganado que depois exige é uma mediocridade do nosso país, quando ele é liderado por essas pessoas. É uma mediocridade da nossa vivência, assim. Então, enfim existe um mundo tão melhor que pode acontecer. Então, acho que é reconhecer. Assim, a gente não vai conseguir falar que tudo mais tem formas de fazer isso, existe muita literatura, existe apoio e existe, tem poucas, mas acho que cada dia mais pessoas brancas que estão se propondo a olhar para isso. Eu acho que tem uma inspiração absoluta da criatividade da potência das pessoas negras que sempre fizeram desse país alguma coisa incrível, mas que a branquitude vem e essas hierarquias tentam despotencializar. Mas, queria terminar falando assim procure outras pessoas brancas para conversar também, porque sempre me chama atenção como as pessoas brancas recorrem as pessoas negras para e perguntarem coisas que estão aí. Então, não é deixar de se inspirar e seguir, mas procurar uns apoios também outras pessoas brancas com quem você pode conversar, porque eu acho que são várias estratégias que vão ajudando a gente há um trabalho. Eu acho que é todos os dias, é constante, quiçá pro resto da vida. Espero que não seja pro resto da vida que a gente vai ver o que a gente vê. Eu tenho esperança de ver nesse tempo de vida ainda muita coisa diferente acontecendo, tenho visto, mas o trabalho de desinternalizar e de lutar, eu acho que talvez seja. Então, não sei, Arlane, se eu respondi, mas, nossa, esse poema mexeu demais, deu uma desorganizada aqui dentro.

 

Arlane: Deu uma desorganizada, Mari

 

Mariana: deu.  Sueli Carneiro, felizmente, sempre faz isso com a gente.

 

Suzane: Bom, eu posso ser polêmica na minha resposta.

 

Arlane: Por favor

 

Mariana: Viemos para isso.

 

Arlane: Viemos para isso.

 

Suzane:  Porque a pergunta que eu mais foquei é como as pessoas brancas devem enxergar a questão racial no Brasil e, honestamente, eu acho que vão fazer porra.  Desculpa o palavrão de novo como eu falei eu sou cristã. Enfim, eu comecei a me especializar em questão racial vai fazer 10 anos, esse ano completam 10 anos, enfim e eu tenho trabalhado com isso em organizações, em escolas e tudo mais já vai fazer uns seis por aí, seis, sete e o que eu tenho visto é cada vez mais pessoas brancas vendo a questão racial brasileira, entretanto, através de um olhar de performance, uma coisa extremamente performativa. Como assim: eu chego num lugar para falar sobre raça raramente alguém me pergunta sobre estrutura, raramente alguém me pergunta sobre hierarquia, raramente alguém me pergunta sobre questão econômica, raramente alguém me pergunta sobre lógicas de poder, mas me perguntam do criado mudo, se pode falar ou se não pode, mas, me pergunta se é preto ou negro. Gente, desculpa de coração, eu não aguento mais responder se é preto ou negro. Gente, tanto faz, é Kléber, escolhe um, tanto faz, eu não me importo certo, entendeu? Não me importo, mas é isso é uma questão de performance. Porque eu percebo que muita gente quer se aproximar da questão racial, mas não exatamente para fazer uma crítica e lidar com como o país lida com raça, eles querem parecer não racistas.

 

Mariana: E ficar confortável

 

Suzane: E ficar confortável.

 

Mariana: Continuar confortável.

 

Suzane: Exato! Eles querem ter literalmente uma lista do que eles não devem fazer, para eles terem certeza que eles vão receber a estrelinha no final do dia. A minha questão é como você deve enxergar, você pessoa branca, deve enxergar a questão racial no Brasil. Você tem que enxergar a questão racial do Brasil como algo que media todas as nossas relações. Todas as nossas relações. Se eu paro para pensar em Justiça no nosso país, isso é questão racial. Se eu paro para pensar em política no nosso Brasil, isso é questão racial. A economia, a lógica de gênero, tudo é raça no nosso país. Ai, nossa, Suzane como você é paranoica, como assim tudo é raça? Tudo é raça. Tudo é raça

 

Mariana: Uhum

 

Suzane: E esse que é o ponto, se tudo é raça, a gente tem que entender que não é só o que você fala, claro, o que você fala é relevante, nós temos sim que pegar e desconstruir o vocabulário racista, que nós aprendemos, mas, honestamente, eu estou pouco me lascando se você parou de falar denegrir, mas você continua sei lá votando em gente que acha que racismo não existe, entende, para mim tanto faz, se você olha para mim e fala ah eu nunca mais usei o termo criado mudo, agora é só mesa de cabeceira, se você apoia sei lá redução da maioridade penal, porque quem vai se ferrar com isso é preto, entende. Então, eu acho que como enxergar a questão racial entendendo que ela vai além de uma performance, ela não é sobre você ser bonzinho, ela não é sobre você ter uma série de amigos pretos, todo batendo palma para você, como você é desconstruído, ela é sobre como o nosso país funciona, é sobre quem vive, quem, quem morre, velho, sobre quem vive, quem morre. Sabe uma coisa muito curiosa. Assim, como eu falei que eu vou ser polêmica, estou nem aí das quantas. Porque é uma coisa muito louca que acontece na minha vida, eu sempre fui pobre fodida, sempre, nunca tive problema com isso, meu pai é dono de boteco. Sabe aquele boteco que vende de ovo colorido e salsicha assim aquela coisa essa? Esse é papai, desde sempre foi, assim. Eu cresci debaixo do balcão, bati microfone, foi mal. Cresci debaixo do balcão, tô viva, ótimo. Quando eu comecei finalmente a alcançar outros espaços, quando eu comecei finalmente a conseguir uma, um avanço econômico, digamos assim, foi a partir de falar sobre questão racial. Mas, eu percebi, na minha vida, que eu conseguia mais trabalho cada vez que um preto morria, cada vez que um cara preto era baleado no Brasil, eu conseguia mais trabalho, eu parei de dormir, eu parei de dormir, eu sentia culpa, eu me senti, senti um lixo. Eu achava que eu entrar lá para falar em cima e conseguir sustentar o meu filho em cima da morte de uma pessoa preta era eu estar traindo a minha família, traindo meus ideais. Eu estou falando isso aqui porque isso foi quando eu comecei a ganhar mais de R$ 1000 no mês, porque a maioria dos meus salários foram menores que isso, eu sempre ganhei salário mínimo na porra da minha vida e eu estou dizendo, porque, assim, eu sentia culpa, mesmo eu sendo estudada para cacete, especializada demais, eu tendo leitura, eu dando aulas boas. Gente, eu dou aulas boas, viu? Eu sou uma excelente professora e eu senti a culpa. O branco não tem culpa, ele está nem aí, muito pelo contrário, ele vê o preto baleado e ele fala aí, mas tudo bem agora, eu falo preto, não falo negro, porque é o correto, então, está tudo certo! Então, eu acho que é isso, sabe, entender para além da performance e entender como essas coisas, elas atingem a nossa vida para além das palavras, para além do você ser legal, não é uma questão de você ser legal, é questão de quem vive, é questão de quem morre, é questão de quem dorme no Brasil, porque recentemente eu não tenho dormido, e você? Sabe.

 

Arlane: Suzane, tem uma coisa, pensando muito na nossa, na nossa atuação, que me deixa bastante intrigada e que eu tenho feito um esforço para relevar, porque é isso, é o preto que morre gente é chamada para ir lá fazer palestra sobre racismo, é alguma coisa que acontece

 

Mariana: Para alguém poder dormir à noite com alguma

 

Arlane: Vem fazer uma cartilha aqui pra gente sobre comunicação, como ser antirracista na comunicação, mas tem uma coisa que sempre pedem é que é a chamada abordagem leve.

 

Suzane: Aí menina. Olha, não é só abordagem leve tem como você ser assim engraçada, eu é

 

Arlane: Dinâmica.

 

Suzane: e eu vou ser engraçada.

 

Mariana: não ser agressivo.

 

Arlane: não ser algo pesado, não ser agressiva, ser algo raivoso

 

Mariana: Deus me livre ofender a fragilidade branca.

 

Arlane: Exato. Assim, com o conhecimento e a experiência que a gente tem a gente sabe que existe um nível ali de maturidade.  Você tem pessoas, tem organizações, nas quais já dá pra gente chegar e ter as conversas reais, algumas, poucas, mas existem, tem umas que sim dá pra gente falar de ações afirmativas, mudar a estrutura de poder, confrontar a cultura de fato. Mas, ainda na grande parte é isso é você levar essa pauta étnico-racial muito nessa linha do que essa abordagem leve para não assustar e para não incomodar as pessoas. Então, você comentando, enfim, sobre essa vivência bastante profunda e bastante complexa, me veio esse pedido que é recorrente para nós, especialmente, para o mês de novembro.

 

Suzane: Uhum.

 

Arlane: que tá se aproximando. O mês da consciência

 

Suzane: é da paciência negra.

 

Arlane: da paciência negra. Exatamente, exatamente. Mas, quando a gente fala sobre como que as pessoas brancas deveriam ver a pauta racial no Brasil, é isso que você trouxe que é uma questão de estrutura, é uma questão de poder, não é uma questão de empatia, de afeto, de amor, de amizade, de coisas legais, não é sobre isso, é sobre poder, é sobre ceder espaço, é sobre ceder poder, é sobre compartilhar espaço, é sobre aumentar a concorrência. Isso não desliga o episódio agora. Continua aqui com a gente.

 

[Risadas]

 

Suzane: Volta

 

Mariana: Segura na poltrona.

 

Arlane: Segura. Uma das grandes preocupações que a gente encontra, especialmente, dentro de organizações e conversando com lideranças é: nossa, mas, vai mudar alguma coisa. Teve um treinamento que eu dei, gente, eu nunca vou esquecer duas sessões para um corpo de diretoria, então, cerca de 10 pessoas, tinha uma mulher, só que era diretora de RH, então, todos homens brancos e tal, cis, heterossexuais. Aí a gente identifica nessas sessões quem que são as pessoas mais detrator, aquelas que colocam um pouquinho mais de resistência, de dificuldade, que querem disseminar um pouquinho a dificuldade e você também contra as pessoas que são mais facilitadoras. Então, tinha um diretor em especial que foi facilitador, gente, durante todo o treinamento, durante toda, todas as sessões, todas as conversas, ele era aquela pessoa que vinha mesmo ali com o conhecimento ainda recente que ele tinha, mas contribuía. Enfim, colaborava para engajar os colegas dele. Nas palavras finais da última sessão, da segunda sessão, ele fala o seguinte: é porque essa conversa que a gente tá tendo aqui, a gente sabe que ela vai mudar algumas coisas, então, por exemplo, aquilo que é nosso hoje não vai ser dos nossos filhos amanhã. Isso foi uma fala que me marcou bastante e ele não falou isso de um lugar de má intenção, mas ele não, com certeza, ele não notou a profundidade desse reconhecimento que ele fez. O ponto é que quando a gente fala da pauta étnico-racial é essa a resolução, a qual esse diretor, esse homem chegou. Não que hoje o lugar que ocupa as pessoas brancas seja delas, não, não é delas. A gente tem todo um histórico aí para provar que mostra, que esse lugar foi um lugar usurpado violentado, obtido as cursas da exploração da escravidão das pessoas negras, do assassinato, do extermínio, das pessoas indígenas, enfim. Mas, o ponto é que sim, uma vez que você olha para dentro das organizações, por exemplo, e você traz mais pessoas negras, você passa a reconhecer que não é simplesmente uma questão de meritocracia, mas é uma questão de acesso histórico, contínuo a direitos e oportunidades, você vai sim aumentar a concorrência, você vai sim tornar mais difícil ocupar, continuar ocupando esses espaços que existem, que são ocupados hoje por pessoas brancas e que significa sim uma cessão e uma divisão maior e mais intensa de poder. Inclusive, a gente usa muito uma palavra, que é usa, que é que é uma palavra muito forte, mas que é usada muito nesse contexto de deixar a coisa mais leve e mais legal e não deveria, que é a palavra empoderar. Gente, como o próprio verbo já nos dá, deixa, o que é empoderar é você dar poder,  é você ceder poder, então, quem na nossa realidade, no nosso sistema, na nossa sociedade que tem hoje condição de ceder alguma coisa, de ceder algum espaço, algum poder, quando a gente fala de relações raciais, a gente tá falando de pessoas brancas, então, é dessa forma que pessoas brancas precisam enxergar a pauta racial. Sim, vai doer, sim, a sua realidade vai mudar, ela não vai continuar sendo a mesma e esse é todo o ponto. Não adianta a gente olhar pra nossa pirâmide socioeconômica, homens brancos no topo, depois mulheres brancas, depois seguidas de homens negros e por último mulheres negras e falar da questão racial como performática. Ai o que que é preto ou negro e tudo mais e achar que tá resolvido. Continuando aquela pirâmide do jeito que ela está. Essa pirâmide que a gente tem que confrontar, ela que a gente tem que mudar de ordem, achatar, é para deixar de existir uma pirâmide não é para continuar tendo uma pirâmide. Enfim, é um processo longo, é uma jornada longa. Outra palavra que a gente gosta e usa muito. Mas, é isso, é essa que é a questão racial, esse que é o cerne da proposta quando a gente fala de equidade étnico-racial e é nesse lugar que você pessoa branca precisa se ver, como essa pessoa que é essa facilitadora, essa promotora, essa impulsionadora e essa pessoa que sim vai ceder seus espaços.

 

[Risada]

 

Suzane: Desculpa. Dadinha dela, dei uma risada enorme na orelha da coitada.

 

Mariana: Caramba, isso aqui, nossa senhora.

 

Arlane: Olha pra gente finalizar, vamos usar aqui um didático de novo.

 

Mariana: Está quente, tá foda.

 

Arlane: momento didático de novo usando aqui uma expressão para facilitar as pessoas iniciantes, novamente, não desliga o episódio continua aqui com a gente.

 

Mariana: Respira.

 

Arlane: Respira, toma uma água.

 

Mariana: você vai aguentar.

 

Arlane: continua.

 

Mariana: vai aguentar.

 

Arlane: Olha só, tem uma um uma expressão que a gente usa, que eu imagino que a Suzane também conheça, que é o teste do pescoço. Vamos deixar a coisa didática aqui para quem tá começando, não tem problema, a gente ensina. Mariana falou aqui no começo da fala dela sobre reconhecimento, sobre pessoas brancas se enxergarem, começarem, parar para refletir, sair do automático, parar de achar que as pessoas marrons [referência da pergunta da filha da Mariana sobre as pessoas em situação de rua] que estão ali no sinal, simplesmente, estão ali porque é normal, porque assim, porque é uma mera coincidência, mas parar para refletir sobre isso, parar para refletir sobre a pergunta que a filha dela fez para ela. Então, uma das coisas que a gente geralmente recomenda nesse começo de jornada para quem agora, talvez na casa dos seus 35 ou 50 anos, está pensando sobre a pauta racial no Brasil é: comece a observar nos lugares que você frequenta, não precisa ir muito longe, no shopping que você frequenta, quem são as pessoas ali junto com você que são as pessoas clientes, quem são as pessoas que estão do outro lado do balcão servindo, quem são as pessoas que só de olhar você já sabe que é o segurança, que às vezes nem é necessariamente o segurança, mas você talvez até confunda com segurança. No seu ambiente de trabalho, alguma vez na sua, ao longo da sua carreira, você já foi chefeado ou chefeada por uma pessoa negra, por uma mulher negra, ou você já chegou a trabalhar com pessoas negras, você já, na organização na qual você trabalha, você tem liderança, tem pessoas negas na liderança, tem pessoas negras ali no escritório, no conforto do escritório não só na loja, não só na operação logística, não só na operação de fábrica, nas coisas que você assiste.  Tem um comentário muito interessante também do professor Silvio Almeida que ele fala assim qualquer pessoa que conheça o Brasil pelas suas novelas, e as novelas brasileiras são bastante populares fora do Brasil, mas qualquer pessoa que nos conheça pelas nossas novelas, especialmente, as mais antigas vai achar que o Brasil é um país de ar europeu, tamanha ausência de pessoas negras, se é que elas estão presentes, se elas estão presentes é isso, é empregada, é o motorista, em lugares bastante específicos e de bastante servidão, então, assim, comece a observar se há pessoas negras na cultura que você consome, nos filmes que você assiste, nas séries nas novelas, nos livros que você lê. Você já parou para pensar na cor das pessoas que escrevem os livros que você lê. Começa a fazer essa reflexão. Eu sei que de ponto de partida já vai ser muita coisa, mas é um

ótimo ponto de partido para começar a atiçar o seu cérebro e você começar a fazer perguntas que talvez você ainda não tenha feito para entender e chegar aqui à conclusão de qual que é qual que deve ser a sua visão, qual que é, qual que deve ser a nossa visão para pauta racial no Brasil, qual que é o seu lugar dentro dessa dinâmica de relações raciais. Era esse o meu último recado. Considerações?

 

Suzane: Amiga, que a gente fala depois de tudo isso, nossa!

 

Mariana: É um silêncio de louvor.

 

Suzane: Não, mas eu acho que só para concluir. Essa questão do teste do pescoço, ela precisa ser feita como movimento inicial, mas eu acho que o segundo movimento tem que ser qualificar esse teste do pescoço e eu sempre falo de qualificar, porque eu nunca vou esquecer na minha vida nunca uma grande empresa super multinacional, riquíssima, me chamou para dar uma consultoria e eu lembro que quem me contratou falou precisamos de um historiadora, porque vamos ter um grande projeto de contratação e nós gostaríamos de alguns especialistas. Eu sou historiadora eu fui chamada. Estava eu e mais algumas outras pessoas negras, cada uma na sua expertise. Aí chegou a liderança, ah liderança, todos homens, tinha até alguns que não eram hetero, mas todos brancos e aí eu lembro muito bem que távamos todas lá e aí um deles um dos líderes, simplesmente, falou: Olha, gente, antes da gente começar, eu acharia muito importante a gente ter algum sociólogo ou historiador aqui para conversar com a gente, porque não é só ser negro que qualifica esse debate e que viabiliza esse tipo de programa, vocês foram atrás de algum? Silêncio, ninguém falou nada, eu fiquei quieta também, eu fiquei esperando alguém chegar e falar: Olá, nós temos uma historiadora aqui, inclusive, ela é mestre em Ciências Sociais. Ninguém falou nada. Na hora, eu só pensei será que eu falo, será que eu vou continuar no projeto, se eu falar alguma coisa, eu fiquei calada quietinha, até que em algum momento eu, simplesmente, falei porque deu minha vez, eu falei: olha, então, para falar a verdade, eu acho que esse projeto de vocês vai ser uma bosta e que não vai para lugar nenhum. Todo mundo olhou pra a minha cara meio, assim. Falei porque desculpa vocês vieram pra sala de reunião sem sequer saber com quem vocês iam se reunir vocês, deduziram que vocês iam se reunir com pretos, e aí vocês vieram aqui.

 

Mariana: Eles estavam aqui só por causa disso.

 

Suzane: Exato. Eu sou historiadora, sou mestre em Ciências Sociais, prazer, Ok, sou formada pela USP, eu tenho várias qualificações e desculpa o projeto de vocês ele não vai sair da página um, obviamente, eu não continuei no projeto. A grande questão é eu poderia ter continuado no projeto, se a pessoa ao meu lado que sabia qual era a minha qualificação e que era branca e que não corria risco algum erguesse a mão e falasse ela é historiadora. Mas, sempre deixam pra gente e a gente perde com isso. Então, eu acho que esse recado é importante fazer o teste do pescoço e qualificar esse teste do pescoço num segundo momento, para você entender também o que você pode fazer ali naquele momento, onde você sabe que você não vai perder, mas que talvez a pessoa preta perda. Cara, eu perdi um trampo bom viu, a empresa era legal, mas, honestamente, eu não faço questão de trabalhar com aquela galera, não. Ó, eu não vou falar o nome da empresa, vocês, todos acharam que eu ia, né? Não, não quero ser processada, não hoje.

 

 

Mariana: Don’t today

 

[Risadas]

 

Mariana: Eles também, assim, não, não sei como foi para você na sequência, você está aqui contando, mas, assim, você falou, você ainda deu a chance deles corrigirem. Você entende? Acho tem, tem uma coisa que sempre me pega, sempre me pega, que é quando a crítica é colocada, porque você escolheu falar, você foi extremamente generosa de certa forma, porque você podia. Eu acredito nisso, eu sei assim, eu acho que a gente tem uma, existe algo que parece muito natural, que é a ideia de que o conforto sempre precisa estar instaurado e a gente sabe em favor de quem, é eu vou falar a verdade, eu não, eu vou tentar não ser hipócrita é muito foda, é doloroso, quando se eu tivesse lá com você nessa mesa tá? Em qualquer posição, não estaria na tua, mas das pessoas brancas que estavam ali ou do RH, que tá assessorando, é muito difícil quando você é confrontado com essa realidade, é um soco no estômago, mas você não precisa morrer com um soco no estômago, você vira e fala assim: Ok, nossa, caramba, mandamos muito mal, que merda o que a gente fez, mas você estava na sala, você estava lá, sabe, você ainda estava dizendo, assim: gente, oi, eu sou historiadora. Nossa! Assim, lamento profundamente, Aí de preferência não fica se justificando, dizendo por todos os motivos pelo qual, bla bla bla, não, não vamos pra reparação, vamos pra reparação, lamento dei um fora aqui, você é historiadora, que bom que a gente tem uma historiadora aqui, então, não tô querendo ser poliana e dizer que sempre dá para salvar. Porque eu do jeito você tá contando eu concordo estava cagada, estava desde o começo, mas eu só queria trazer esse ponto, que é, assim, Acho que Arlane passa muito por isso, você também nas tuas consultorias, eu passei, Eu e Arlane, quando a gente tá junto, a gente tenta trazer isso que é o seguinte: quando alguém está te contando que você fez merda está te dando uma chance de você reparar aquilo, então, eu tento trazer, evocar esse espírito, talvez sendo utópica, esperançosa demais, dizer assim: gente, agradeça porque a pessoa podia ter virado as costas, nem ter te contado que você falou merda, ela ainda estaria bem justificava, porque suponho que não foi a primeira vez que você passou por isso.

 

Suzane: Quem me dera.

 

Mariana: A pessoa ainda está te dando a chance, ela ainda tá ali com você.  Arlane, quando ela fala tipo, assim, não, você mandou mal, por exemplo, essa história que você contou, eu precisei que você contasse umas três vezes para entender o que você estava falando assim. Então, assim, você ainda está tendo a chance de ser confrontado com aquilo, você tá tendo a chance de reparar aquilo, sair desse ego de desculpar, justificar e vamos para reparação, a gente ainda pode reparar, às vezes, não dá mais para reparar, mas, às vezes dá, então, é tentar construir um lugar que não é o do conforto de não ser julgado, de ficar nesse lugar do eu eu eu, performático, deixa eu dormir hoje feliz e falar assim: não, a gente tá construindo algo coletivo, eu ainda estou tendo a chance de ser aceita num lugar de construção, porque tem pessoas que nem querem mais construir com as pessoas brancas, e eu nunca as criticaria. Arlane, me mandou um vídeo esses dias, que a menina branca falava assim: o que que você pessoa branca que tá ofendida com as pessoas negras, que não querem estar mais com você, não é sobre você, necessariamente, o que que as pessoas brancas fizeram para que as pessoas negras confiassem nela, muito pouco. Então, vamos daqui para frente, vamos, vamos sair desse, desse eguinho aqui que é tão confortável e tão floquinho de neve, vamos para uma construção coletiva. Podia, A sua fala foi uma fala que podia ter dado a chance das pessoas, ela deu a chance das pessoas fazerem, talvez, fazerem diferente, mas, não a branquitude quer se preservar, quer preservar sua autoimagem, é isso, é, é muito triste, assim, porque a gente podia estar fazendo tantas outras coisas, estamos aqui fazendo, estamos aqui fazendo, estamos tentando criar uma coisa que até hoje a gente não viu.

 

Arlane: Sim. As pessoas ficam no que eu chamo de cantinho da reação, ficam ali presa naquele canto e, até fazendo conexão com, que adorei, porque isso tudo se conectou ao título do episódio que é: pessoas brancas são culpadas? Geralmente, quando elas chegam nessa conversa aqui, quando elas começam a assistir um podcast como esse, por exemplo, uma das primeiras reações que a gente vê é a sensação de culpa e assim, eu acredito que até faça parte do processo e tá tudo bem, porque realmente não deve ser muito fácil você começar, quando adulto, a rever sobre a história do Brasil, a de fato aprender sobre a história do Brasil e não se sentir de alguma forma: Poxa! Como assim os meus antepassados, as pessoas, todos os fenômenos que permitiram e que permitem que eu esteja onde eu estou, que eu seja quem eu sou, Poxa, tem um histórico ali de muita injustiça, de muito massacre. Mas, assim, uma vez que você tenha essa reflexão saia do cantinho da reação, saia do cantinho da culpabilização, não é, nunca foi e nunca será sobre culpa. Tem três coisas que eu gosto de falar: primeiro é sobre reconhecimento que nós já falamos aqui, segundo é sobre responsabilidade, então, a responsabilidade veja a questão da desigualdade racial não é das pessoas negras, não é das pessoas indígenas, não é das pessoas negras e das pessoas indígenas, ela é, primeiramente, das pessoas brancas, então, responsabilidade sobre o que precisa ser mudado, sobre o que precisa ser endereçado, e a última coisa é você reagir, é você fazer alguma coisa, você agir, levantar a bunda da cadeira e começar a fazer alguma coisa em todas as dimensões da sua vida individual, profissional, em todas as dimensões da sua vida, então, assim, não é sobre culpa, nunca foi sobre culpa, sim, leve o seu tempo aí para digerir um pouquinho.

 

Mariana: liga para um amigo branco, ao invés de ligar para uma pessoa preta. Aí você conversa, gente, liga para mim, pode ligar, aí depois a gente vai pro próximo trabalho.

 

Arlane:  Sim.

 

Suzane: Não liga para mim, não estou cansada

 

Arlane: Não, para mim, pra Suzane, não. Faça essa reflexão

 

Suzane: A não ser que você me pague aí ok, aí beleza

 

[Risadas]

 

Mariana: Bem.

 

Suzane: É, é.

 

Arlane: Sim. Aí nós vamos, aí nós vamos. Mas, é isso acho que demos os nossos recados. Vamos então pro próximo episódio.

 

[Música]

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Referências

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

MCINTOSH, P. White privilege. Unpacking the invisible knapsack. Gender through the prism of difference. Peace and Freedom v. 235, n. 8, 1988.

Instituto de Referência Negra Peregum. Projeto Seta. Percepções sobre o Racismo no Brasil. IPEC, 2023.

DIANGELO, R. Não Basta Não ser racista Sejamos Antirracista. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Faro Editorial, 2018.

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva SA, 2016.