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O que é Consciência Racial?

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Sobre

Na terceira parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre o que é e como seria o desenvolvimento de uma consciência racial.

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Episódio

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Transcrição

PROJETO DE ASSIS

Episódio 3 – O que é Consciência Racial?

 

[Música]

Arlane: Quem é branco no Brasil?

Suzane: Tudo é raça no nosso país.

[Música]

 

Arlane: Depois dessas discussões bem levinhas que a gente teve.

Suzane: Nada acaloradas

Arlane: Nada acaloradas, depois de ter deixado aí algumas reflexões bem complexas para você desenvolver. A gente vai começar esse último episódio dessa primeira temporada tomando uma cervejinha porque vamos estudar para brindar.

[Todas] Saúde Vida Longa Vida longa.

Arlane: Vida longa para a gente conseguir digerir o restante do episódio.

Mariana: A gente é ótimas garotas propagandas, gente.

Suzane: Exato, patrocina.

Mariana: Nossa, que cerveja será que Machado de Assis bebia? Será que Machado de Assia bebia cerveja?

Suzane:  Ah, mas com certeza.

Arlane: Ah, ele era tão legal devia beber cerveja.

Mariana: Já pensou.

Arlane: Hum também foi depois que eu cresci que eu aprendi que Machado de Assis foi funcionário público. Vocês sabem vocês sabem disso agora? E parte do trabalho dele teve relação com a Lei do Ventre Livre, correto? Se eu não engano é isso porque acho que tinha em algum momento as pessoas escravizadas recorriam à justiça para fazer valer a Lei do Ventre-Livre. Gente, se eu tiver errando aqui o nome da lei, peço desculpas, a gente coloca uma nota de correção no site,  mas, então alguém ali do setor público tinha que trabalhar, investigar e tomar alguma decisão, no final das contas, se aquela pessoa escravizada se encaixava ali na lei aí do Ventre Livre ou não. Ora, ora, ora, o senhor Machado de Assis estava envolvido nesses processos. Olha que coisa maravilhosa, outra coisa é depois também de grande, a gente estuda sobre a época da Abolição ali sobre o 13 de Maio de 1888 e tem fotos registros do Machado nas ruas do Rio de Janeiro, nas festas, celebrando, comemorando. Eu falo gente por que não mostra essas coisas pra gente no ensino médio, quando a gente tem que ler Machado de Assis isso é uma coisa extremamente grandiosa, além da principal é do fato do Machado ter sido um homem negro, assim, como que não mostram isso pra gente, por que que não mostram isso pra gente. Fico, enfim, mas, à medida que eu conheci isso fiquei muito indignada, mas também muito feliz porque poxa que bom é descobrir isso sobre uma das maiores referências que a gente tem.

Suzane: E curiosamente eu lembro que quando eu comecei a estudar literatura, quando eu entrei na faculdade de história, era senso comum dizer que Machado de Assis foi um homem que não se posicionava em relação à escravidão.

Arlane: Olha!

Mariana: Não basta apagar.

Suzane: Era senso comum porque usavam as obras mais clássicas dele como Dom Casmurro, Memória póstuma para dizer: viu, como ele era totalmente alheio. Eu falo: gente, vocês não estavam… crônicas, gente, atuação sabe é curioso né? E, não à toa digamos.

Mariana:  Fico pensando, assim, você historiadora, você acompanha sua obra, suas coisas, eu suponho que você quer falar sobre tudo, você pode falar sobre tudo e aí no futuro alguém vai pegar e vai falar que você não falou sobre o racismo porque em algum momento.  São as estratégias infinitas, assim, sabe, então, a Arlane vai fazer um podcast amanhã sobre jujuba, gente. Arlane se vocês não seguem, sigam Arlane nas redes sociais, ela tem uma corg. Eu falei certo, então?

Arlane: Isso.

Mariana: Por que a Arlane gosta, quantos graus de desumanização e despotencialização, sabe gente? É realmente, assim, é, mas, não vencerão, não vencerão.

Suzane: Não, porque cá estamos,

Mariana: Cá estamos com Machado de Assis tá preto, aqui estamos vendo ele.

Suzane: Cá estamos, Cá estamos com Projeto de Assis, isso mesmo. Bom, senhoras pra gente começar esse episódio final, eu quero ler um outro poema de uma outra mulher negra Luciene Nascimento, esse poema eu vim conhecer através da Liliane Rocha e da Drª Fernanda que trabalha com ela, a gente foi recentemente no relançamento do livro da Liliane que agora se chama “Como ser uma liderança inclusiva”. Espero que tenha acertado o título. E, nesse evento de lançamento do livro, Dra Fernanda declamou esse poema ela, ela, eu vou ler tá aqui o poema. Ela declamou esse poema foi uma das coisas mais poderosas que eu vi nos últimos tempos, então, para compartilhar com vocês também, inclusive, estou aqui com o livro. Esse daqui é o livro da Luciene Nascimento se chama “Tudo nela é de se amar”, muito indicamos, com certeza. Vou ler aqui pra agente conhecer um pouquinho desse poema, ele é um pouquinho longo tá, ele se chama “sociedade é construção e o racismo é o cimento”. Então, pega a sua cervejinha aí também para você acompanhar e digerindo as palavras da Luciene Nascimento. Começa:

Nunca esqueci Soninha Freitas palestrando

Em bê-a-bá pra tentar explicar a complexidade do problema do racismo no Brasil. Ela dizia algo como:

Bom exemplo é a construção

Pense em paredes de uma residência

Tijolos formam a estrutura

Com o concreto arquitetura

Ganha formato e aparência

Sociedade é construção e o racismo é o cimento

Componente estrutural

Formador fundamental

Do interior e do acabamento

Nessa fala eu acrescento:

Nossa estrutura social foi forjada no sofrimento

Houve esforço intencional

Atuante, fraudulento,

Apoio internacional à tese do branqueamento

Descolorindo e repintando

Tinta de sangue e caneta

Queremos desconstrução

Porque tentar sugar cimento

Sem romper essa estrutura

É como pôr atadura

Em anos de adoecimento

Educação

Educação rima com coisas muito simples

Rima com escolas falando das coisas nossas

Mas não só em novembro

Rima com aprender que a questão racial

É esforço coletivo,

Que ter medo de polícia não é por acaso

Que a propaganda não é inocente,

Que se a senhora preta não te olha nos olhos pra

Falar com você, Doutor, é responsabilidade

Sua educar seus filhos pra respeitar os meus

Filhos para que as próximas senhoras pretas

Não tenham esse peso no olhar

Sociedade é construção e o racismo é o cimento

Componente estrutural

Formadora fundamental

Do interior e do acabamento

Tem que haver desconstrução

Porque tentar sugar cimento

Sem romper a estrutura

É como pôr atadura

Em anos de adoecimento

Conserto é planejamento,

Consciência e postura,

Análise de conjuntura

Vontade e conhecimento

 

[Som de assobio]

Arlane: Sim, Luciene Nascimento.

[Risadas]

Mariana: Uau!

Arlane: que, que, que lindo que forte, assim que que poderoso esse poema, me marcou bastante.

Mariana: Amei

Arlane: muito, muito conectado, inclusive, a tudo que a gente tá conversando aqui. Bom, o que vocês acham que é consciência racial?

Suzane: Par ou ímpar para ver quem começa? É, olha, é uma pergunta bem difícil porque eu acho que, eu não acredito que exista uma consciência racial, eu acredito que existam consciências raciais, no sentido, de que é possível ter várias abordagens, que confluem para que você tenha essa consciência, várias abordagens são possíveis, quando eu falo de consciência racial, eu posso falar, por exemplo, que é uma consciência racial para negro, por exemplo, a minha mãe, mulher preta retinta, tudo mais, ela conseguiu uma consciência racial a partir do momento que ela entendeu que o dia que pararam a filha dela que era diplomada que blá blá blá blá blá e trataram ela que nem um lixo, pararam a filha dela, a polícia parou trataram ela que nem um lixo, no dia que a segunda filha dela, ela sofreu violência obstétrica, por enquanto estava grávida, estava lá tendo seu filho, foi quando ela, foi percebendo que cada uma dessas coisas tinha um elemento em comum e esse elemento era pele preta, foi quando ela percebeu pela primeira vez que ela tinha abertura para falar sobre as experiências dela, quando ela era criança, quando ela era adolescente e que ninguém ia rir ninguém acha graça, porque ela sempre falava de como quando ela era criança chamavam de macaca, grudava um chiclete, chiclete, no cabelo dela porque era um cabelo crespo do tipo 4c. Joguem no Google, depois tá tipos de cabelo, cabelo de mamãe 4c, pois bem do tipo 4c de como colavam o cabelo dela, de como humilhavam ela e ela sempre contava isso como se fosse uma piada, teve um dia que ela reparou que não tinha graça e aí ela foi entendendo que ela era uma mulher preta, mãe de mulheres pretas também que estavam ali lidando com isso, lidando com a vida, ela conseguiu adquirir uma consciência racial e ela conseguiu pensar na própria vida, pensar na própria família por um outro viés e isso assim é perceptível na cutes dela, no olhar, no brilho do olho, o quanto a transformou. Então, eu acho que há essa consciência racial para quando a gente fala de pessoas negras, mas a gente tem que falar também de pessoas brancas e consciência racial para pessoa branca ao meu ver e, eu acho que essa é uma das possibilidades, não é a única, é você entender que e aí vai ser polêmico. Eu sei que você não vai gostar, mas você entender que você é racista.  É, não, Suzane, claro que eu não sou porque eu sou muito legal, como eu falei eu já namorei uma negra, já blá blá blá. Então, a questão é essa, quando você é uma pessoa branca e você tem consciência racial, você entende que você foi criado forjado, você foi parte dessa construção cimentada através do racismo, o modo como você vê as pessoas é mediado por raça, o modo como você entende o mundo é mediado por raça, e é mediado por uma hierarquia racial, você faz parte disso, você compartilha deste universo, você, muito provavelmente, tem pensamentos e lógicas racistas dentro de você, tendo essa consciência você tem a possibilidade de rever coisas, você tem a possibilidade de se rever, quando você tenta e entra nesse processo de negação, onde o racista é o vilão da Disney, sabe o vilão da Disney, ele tem unhas cumpridas, ele está atrás da moita, ele é super malvado horroroso, blá blá blá blá blá, quando você vê  assim, você nunca vai se identificar e se você não se identifica você não se coloca como uma pessoa que é capaz de reproduzir, é capaz de ferir e é capaz de impedir o avanço de pessoas negras. Então, quando eu falo ou quando eu gosto de falar e pedir consciência racial para pessoas brancas, eu tô falando do processo de entender que o racismo, ele constrói a nossa sociedade, você que é branco, provavelmente, é uma pessoa racista e a partir dessa consciência, não é para você ir pra cama chorar, não é para você dar chicotada nas suas costas, não é para você se sentir culpado, não é para você procurar o seu amigo negro e falar a me perdoa, não tem nada a ver com isso, isso é para você, realmente, olhar ao seu redor, olhar a si mesmo e tentar pensar: Legal, fui criado desse jeito, o que, que eu posso fazer de diferente agora para que exatamente os seus filhos, os meus filhos possam ter uma coisa de diferente em relação a isso, então, acho que essas são duas possibilidades que eu creio que são uma, algumas, entre várias, eu não acredito em uma única consciência racial.

Mariana: Que demais isso, que você falou assim é, eu às vezes, nossa, você acabou de resolver uma coisa aqui para mim, obrigada, a minha próxima cerveja da Suzane.

Arlane: mostra, mostra aquele sinalzinho, assim, de carregando, carregando.

Mariana: que importante Suzane porque eu concordo totalmente sobre ter várias formas e acho que só agora com você falando isso, eu pensei nisso, porque eu fico é pensando. Bom, primeiro concordo totalmente, concordo totalmente, assim, eu, você até, você foi generosa, você falou: se você uma pessoa branca, você, provavelmente, é racista.

Suzane: eu sou fofa às vezes, né?

Mariana: É, você foi, você foi, eu acho que é invariavelmente, é muito constitutivo das vantagens que você tira, da ideia de que você é especial e aí claro, se você é rico vai ter uma conotação, se você é classe média vai ter outra, se você tá na periferia é outra, mas você tá falando sobre várias consciências e eu tô aqui pensando mesmo, porque às vezes eu fico pensando, hoje vindo para cá pensando, mas por que tipo, por que tá atrelada essa questão racial, e aí eu fico pensando nas pessoas que dizem, então, por exemplo, lá tem uma intelectual branca americana que vai dizer que as pessoas brancas perdem muito ao viver nesse mundo da mediocridade, Ok concordo, e tem ai a Lia Vainer Schucman, que vai cada vez mais numa pegada mais das famílias e tal tem Sueli Carneiro, que vai, gente, são n’s formas, então, eu, às vezes, fico pensando, assim, é por que, eu sei o meu porquê, mas eu acabei de me dar conta que, o que eu fico matutando não é porque eu não sei o meu porquê, mas a ideia é que tenha um porquê só e de porque eu tô falando de consciência, faz muito sentido, assim, então, o meu pai que é uma pessoa branca e quando a gente conversa sobre racismo e ele vai lá ativar as memórias de juventude dele, de ser uma pessoa que morava na periferia, mas entende que o fato dele ser ruivo e muito branco, porque vem de uma mistura, tinha uma relação diferente com o amigo dele, que ele chamava de negão, e às vezes, vem fala essa coisa: Ah mas chamava de negão, isso não racismo. é uma coisa. A minha mãe, que hoje conversa comigo e minha mãe, então, uma pessoa uma coisa com traços mais europeus e tal e, às vezes, eu tô conversando com ela e ela vai me contar uma história, ela começa aí você não sabe conheci uma moça aí, eu falo assim ela é branca ou ela é preta, ai ela:  – você só pensa nisso. Eu falo: não só tô perguntando, porque, provavelmente, para história vai, eu só quero saber, em viés de eu perguntar, se ela era alta, se ela baixa, não é tão simples assim, porque provavelmente a história vai muito diferente, se ela era. Então, o meu ponto é tem tantas formas de ver isso, que eu acho que a gente pensa, que realmente que tem uma, eu acho que até hoje, eu tava pensando que tinha uma que era mais acabada que as outras.

Suzane: A grande iluminação.

Mariana: Isso tá me fazendo aqui pensar, que isso tem a ver com a ideia de que tem um jeito de ser, eu acho que tem coisas em comum, que a gente pode costurar, assim, com as vivências de quem tem e pele preta retinta, de quem tem uma pele, que é uma pessoa negra de traços claros, com certeza, tem coisas comuns, mas como é muito constitutivo da nossa vida vai ter N histórias a respeito, e eu acho que isso é muito rico. Gente, me liguem para falar sobre branquitude não vão encher o saco das amigas pretas de vocês, já vai para um lugar, mas quando às vezes, as poucas pessoas que querem conversar comigo sobre isso, são poucas pessoas, e eu fico às vezes escutando as histórias de vida, de onde vem ter pensado sobre isso é fascinante mesmo, mas, eu acho que assim é isso, qualquer que seja o seu motivo para pensar, qualquer coisa que te trouxe até aqui para tá assistindo esse vídeo, é legal, as histórias são bacanas, as nossas vidas são múltiplas e a gente pode conviver com coisas em comum e coisas particulares, com a história que cada um vai ter, e aí para terminar só queria, queria contar porque desde a hora que você perguntou para mim tem a ver, você falou deve ser difícil, você contou a história da sua mãe e tal é de quando a Sueli Carneiro, você estava comentando no outro episódio sobre as empresas, as grandes empresas, que contratam intelectuais e pensadoras que são negras, e que é não fazem jus, muitas vezes a isso, eu queria evocar aqui a história com Sueli Carneiro, gentilmente, generosamente, pacientemente, aceitou o convite de uma grande empresa, da qual eu estava ali no contexto e ela foi falar sobre, sobre racismo, sobre, gente, com certeza, o tema foi esse, provavelmente novembro e ela foi a primeira pessoa, eu tinha já 30 anos, como é a média das pessoas brancas que se dão ao luxo de viver, às vezes a vida inteira sem pensar nisso, e ela olhou no meu olho e no olho das pessoas brancas que estavam ali e falou mesmo que você não tenha assinado o contrato, que determinou que pessoas brancas teriam vantagem em detrimento das pessoas negras, você não estava lá no dia que esse contrato foi assinado, que esse essa regra foi imposta, mas você se olhando, no meu olho, se beneficia até hoje disso e isso foi, se eu tivesse tomado uma voa no meu útero, não teria doído tanto, foi fisicamente doloroso e certamente eu fiquei algumas noites sem dormir, mas eu considero que eu nasci de novo nesse dia, eu considero que eu nasci de novo nesse dia, e aí eu fiquei pensando você, eu queria, você não precisa da minha confirmação, mas eu queria dizer que é isso mesmo, você se sente enganado, eu, quando daí, eu comecei, peguei esse soco no estômago e comecei a olhar a falar assim, caramba história esse conto de fadas, que me contaram não tem um outro lado e esse outro lado, por mais que possa doer fisicamente no momento, me mostrou uma outra coisa sabe, até então o Brasil para mim era uma coisa qualquer, que não sabia por que eu ainda não tinha ido embora daqui como tantos amigos meus foram e, a partir desse dia a despeito de tudo, eu acho que foi dia, que eu comecei a acreditar, provavelmente, utopicamente, mas espero que não que pode ter uma outra coisa, então, assim ficar lá em posição fetal com culpa e tal, com certeza,  porque não vai adiantar nada, não vai resolver nada para ninguém, e assim dá para continuar e tem tanto, tem coisa eu pode ter coisa tão melhor depois disso, assim, dessa mediocridade, dessa coisa, então, acho que a consciência é, para mim, o que eu estava tentando dizer que existem muitas, mas para mim é uma luz assim que de que, de que guia e fala assim: gente, tem tanta coisa maravilhosa, que não foi contada, tem tantas formas de ser, quando a gente escuta Sueli Carneiro, Cida Bento, Ailton Krenak, Alessandra Munduruku falando,  Nego Bispo, você fala caramba, tem tantas coisas, tem tantas existências possíveis e a gente ficou presa nessa que é só mais uma, infelizmente, é tão pobre, eu não sei para mim, renova demais assim, me ilumina mesmo.

Arlane: é isso, tem uma fala sua de uma palestra que a gente fez e tinha uma pessoa branca ali que estava bastante, no momento de bastante confronto, que é estava naquela, naquele conjunto de reações, ah porque eu sou uma boa pessoa, não sei o que e tal, você respondeu o seguinte, então, mas, essa conversa aqui é sobre uma estrutura muito maior do que nós e que vem muito antes de nós, achei que isso foi bastante, assim, sucinto porque, inclusive, fez aquela pessoa naquele momento ficar mais quieta.

Mariana: que, é o que você fala sobre estrutura, que é o que Luciene fala sobre concreto.

Arlane: sim, sobre estrutura. Não, não, é.

Mariana: Você me ensinou.

Arlane: Sim, não, não é sobre quando a gente fala de consciência racial, ela vai muito, muito, muito, além do aspecto individual, do aspecto de como a gente se vê no mundo. E aí, o que eu queria dizer, por exemplo, para uma pessoa branca, que esteja nos ouvindo, nos assistindo, é que consciência, a primeira coisa, primeira característica da consciência racial, é você entender que você não é um indivíduo, você não é um indivíduo, você faz parte de uma sociedade, você faz parte de uma estrutura, que é muito maior do que você e que vem de muito antes de você, quer você queira, quer você não queira, quer você reconheça, quer você não reconheça, você não é um indivíduo, as coisas que você tem, as suas conquistas, as suas relações, o lugar que você ocupa na sociedade, é também sobre o seu esforço, não vou, não vou aqui dizer que você nunca se esforçou porque essa é uma grande questão, ah, mas, nossa e o meu esforço, sim tem o seu esforço individual, não duvido disso, tem os nossos esforços individuais, e em somatória numa proporção muito maior, tem as heranças que a gente carrega na nossa sociedade, só o fato de, por exemplo, você não ter o cabelo de uma pessoa negra, um cabelo crespo, isso já te, é isso já é um benefício, por exemplo, que você tem, vou usar uma palavra bastante comum nos dias atuais, mas que exemplifica, que ilustra muito isso, é um privilégio que você tem de não ser por exemplo declinado ou declinada de uma entrevista de emprego ou desrespeitado em alguma situação ou, por exemplo, você está caminhando no Parque Ibirapuera, como eu estive um dia e uma mulher, que eu nunca vi, não sei quem é, simplesmente, chegou e começou a tocar no meu cabelo do absoluto nada, então, assim, a primeira característica da consciência racial, na minha visão, é essa, é você entender que você não é um indivíduo, você está você faz parte de uma estrutura muito maior. Concordo com Suzane e com Mariana que há várias, várias formas de desenvolver essa consciência, vários tipos de consciência, cada pessoa tem a sua trajetória, cada pessoa tem a forma de aprender, a Mariana foi confrontada, por ninguém, menos que Sueli Carneiro.

Mariana: Obrigada, Sueli Carneiro, eu vivo todos os dias tentando honrar Sueli Carneiro, Cida Bento, Arlane, Suzane entre outros.

Arlane: Talvez você não tenha a sorte de ser confrontado ou confrontada por Sueli Carneiro e mas, eu acho que, no final das contas, o resultado da consciência racial, ele é um só, gente, porque assim, se você é uma pessoa que diz que se interessa pela temática, que diz que lê sobre a temática ou que assiste as palestras, minhas da Suzane ou nossas, ou que tá vendo esse podcast ou que já ouviu outros podcasts como Projeto Querino, por exemplo, ou enfim, se você é uma pessoa que de alguma forma se relaciona com esse tema e você ainda não se sente incomodado ou incomodada tá faltando alguma coisa, você ainda de fato não chegou a ponto de desenvolver a sua consciência social, porque para mim isso o resultado da consciência racial do desenvolvimento constante da consciência racial, é você chegar ao ponto de estar num incômodo insuportável, não tem como, gente, você olhar para nossa sociedade, você começar a enxergar as nuances da nossa realidade, entender como de fato se dá a nossa realidade de fato, como se dão as relações raciais, a hierarquia racial, a desigualdade racial no nosso país e você não ficar insuportavelmente incomodado ou incomodada, não tem outro resultado, não tem outro resultado, então, se você está dentro da sua organização, por exemplo, ah você ainda tem questões, aí com ação afirmativa, ah não, mas porque tá tudo bem investir num programa de desenvolvimento, mas, assim no final das contas, o que importa é o mérito individual, você ainda não entendeu, em resumo, você ainda não entendeu, você ainda não de fato desenvolveu uma consciência mais aprofundada racial, acho que Suzane e Mariana deram aqui explicações bem, assim, é, abertas e bem, bem esmiuçadas sobre isso, mas é isso assim não importa qual caminho que você tome, não importa qual livro que você leia, pode ser o Silvio de Almeida, pode ser da Djamila Ribeiro, pode ser quem for, o resultado ele é um, um só, é um incômodo insuportável.

Suzane: Não, só uma um adendo muito básico uma historinha uma anedota. Eu morava em outra cidade da região metropolitana de São Paulo e aí para ir pra minha cidade, eu precisava passar por uma catraca, onde eu passava um bilhete e era muito comum esse bilhete desmagnetizar, aí quando eu passava o bilhete sempre tem um guarda próximo à catraca e desmagnetizar, ele mandava eu desci as escadas e novamente na bilheteria trocar, o bilhete que desmagnetizou, era comum sempre acontecia, eu odiava porque eu estava correndo para pegar o ônibus e a acontecia, pois bem um dia eu estava com um grande amigo meu, branco, e aí ele foi passar e o bilhete dele desmagnetizou, o guarda, outro guarda não era o de sempre, sempre mudava, o guarda olhou para ele e falou pode passar, deixou ele passar e na hora, eu falei caramba, que sorte. Ele olhou para minha cara e falou sorte, ele só fez assim [apontando para a cor da pele], eu olhei para ele, eu olhei para mim, eu falei, oh fuck my god, ele tem razão, eu fiquei chocada, porque eu juro, eu normalize aquela coisa.

Mariana: A catraca.

Suzane: Exato, eu normalize, eu voltar e quando eu vi a pessoa branca fazer aquilo e ser liberada, não precisava descer para trocar, para provar que pagou, eu olhei e falei: nossa que sorte a sua, porque eu não tenho a mesma sorte. Só que ele e eu acho que ele foi a primeira pessoa branca que eu conheci que eu falei assim: esse cara tem consciência racial, velho. Eu acho que nunca antes, eu tinha conhecido alguém. Ele olhou para mim e falou sorte, ele mostrou a próprio tom de pele, porque isso é uma das coisas complicadas, muitas vezes, o que você chama de mérito, o que você chama de sorte tem a ver com a tua cor, tem a ver com a tua branquitude, entender isso, questionar isso é doloroso, porque é muito legal, você falar, eu mereci, eu tive sorte que dia legal, olha como.

Mariana: É muito legal as catracas se abrirem para você.

Suzane: Exato! É maravilhoso, você não precisa descer as escadas, passar pela fila novamente trocar o seu cartão para provar que você pagou alguma coisa, é muito legal, você, simplesmente, resumir tudo em sorte e eu acho que esse é um dos desafios da consciência racial, você começar a questionar a sua sorte, começar a questionar o que você sempre chama de mérito, o que você sempre chamou de ah essas coisas legais que acontecem comigo, sabe, eu acho que aí também é uma boa, eu sempre lembro dessa história.

Arlane: Perfeito, perfeito, vou começar, vou começar, questiona na sua sorte perfeito, é bem por aí mesmo é bem por aí mesmo bom. Para quem ainda, está conosco para quem não fugiu, não saiu correndo.

Mariana: não se escondeu dentro da …

Arlabe: não se escondeu.

Mariana: na mofada, do, da poltrona.

Arlane: Continue conosco que agora a gente vai ler vou compartilhar com vocês uma crônica de Machado de Assis. O Projeto de Assis em homenagem ao nome de Machado, em homenagem ao obra de Machado, a gente estava aqui conversando sobre ele também, enfim, e inclusive, assim tem um pequeno trecho da minha vida, sendo uma pessoa negra sempre acostumada a ser única ou quase única nos lugares, sou formada na Universidade Federal de Goiás, entrei lá já com as cotas universitárias vigentes, mas ainda assim, eu no meu curso de administração de 40 pessoas, tinha talvez quatro ou cinco pessoas negras comigo, mas assim nada se compara ou nada se comparou a primeira vez que eu visitei a Faria Lima, para você que não conhece São Paulo.

Suzane: ih rapaz.

Arlane: para você que não conhece São Paulo, aí já é para você que não conhece São Paulo ou ainda não visitou a Faria Lima.

Mariana: Para você que não sabe que é branquitude, aura do campeonato.

Arlane: Eu costumo chamar a Faria Lima de A Nova Paulista, porque é como se, a Faria Lima é como se fosse o Grande centro econômico do Brasil, é a avenida, na qual estão a sede de grandes empresas nacionais e internacionais, ou seja, tem uma grande concentração de poder e capital econômico ali, político ali também e a primeira vez que eu fui na Faria Lima, eu fui trabalhar numa empresa cuja sede era lá, eu nunca vou me esquecer, gente, a primeira vez que eu entrei no andar daquela empresa tinha cerca de uma centena de pessoas naquele andar, olhei para um lado, olhei pro outro, eu era a única pessoa negra, eu era a única pessoa negra naquele andar, fiquei um uns segundos ali meio parada e na hora que eu olho para as laterais, eu encontro outras mulheres negras estas uniformizadas, no caso, sendo as zeladoras daquele ambiente, daquele prédio, então, assim tem um grande aprendizado aí, para mim, esse foi um grande marco na minha vida, vida, na minha trajetória de desenvolvimento de consciência racial e nesse processo uma das coisas, que eu fui aprendendo mais e que me impulsionou nesse desenvolvimento, foi conhecer mais sobre Machado de Assis, sobre as coisas que a gente estava conversando aqui no começo, inclusive, num período pré-pandemia, eu fiz um curso livre na USP presencial com um professor especialista em Machado de Assis e a minha vontade durante as aulas era de chorar porque assim era isso, ele contando todas essas coisas, todas as coisas que o Machado foi, todas as coisas que o Machado fez que a gente nunca, nunca aprende, nunca soube e nesse curso eu tive o contato, então, com uma crônica que o Machado publicou na Gazeta de Notícias, no Jornal Gazeta de Notícias, no dia 19 de maio de 1888, essa era a próxima data de publicação disponível para o  Machado depois do dia 13 de Maio, depois da Abolição, então, se você ainda, por exemplo, é da pessoa que acredita que: Ah, o Machado nunca se posicionou politicamente ou nunca falou sobre questões raciais na sua obra etc, think again, pense de novo, sabe, porque essa, esse, por exemplo, essa, por exemplo, é uma das crônicas é uma das publicações do Machado que, justamente, na forma ácida crítica e sútil, mas não sútil dele, ele fala pra gente sobre a questão racial no Brasil, vamos lá:

Bons dias!

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…

– Oh! meu senhô! fico.

– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…

– Artura não qué dizê nada, não, senhô…

– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites.

 

[Pausa]

 

Arlane: Machado.

Suzane: Só um parênteses básico, ele menciona que Pancrácio tem assim mais ou menos uns 18 anos e que já tá maior que ele, se a gente seguir um pouquinho as datas, 1871 sai a Lei do Ventre Livre, ou seja, Pancrácio tendo essa idade mais ou menos, ele já deveria ter sido livre há muitos e muitos anos, então, fica aí a qualidade de todo o debate e dessa ironia perfeita, que foi feita, e que realmente representa muito do que aconteceu na nossa época e que acontece até hoje.

Arlane: Muitas nuances essa crônica.

Suzane: Oh!

Arlane: Não é para qualquer mente.

Mariana: Se alguém ficou na dúvida, não deveria ficar na dúvida, o que é antirracismo performático, depois que Suzane escreveu perfeitamente, mas, se alguém ainda ficou na dúvida tá aí.

Arlane:  Muita. Bom.

Mariana: Muito bom.

Arlane: Olha, a gente deixa esse último, essa última intervenção para você refletir a respeito fico super à vontade, se você é uma pessoa branca para ligar pra Mariana e trocar ideias com ela ou para contatar eu e a para nos contratar, vai estar disponível no nosso site, inclusive.

Suzane: Fazemos festas.

Arlane: Contato para nos levar, pra gente conversar, pra gente levar essa conversa, pra organização que você estiver com este nível de qualidade e de profundidade, mas, assim o convite final fica para que não, não, não deixe essa conversa para aqui, não deixe esse tema para aqui, se esse foi o seu primeiro contato com a pauta étnico-racial, que seja o primeiro de muitos, que venha aí um aprofundamento, interesse até você chegar ao ponto e continuar no ponto de um incômodo insuportável, porque esse é o nosso objetivo e se você nos acompanhou até aqui mesmo que de forma pausada, mesmo que com algumas cervejas, não tem problema, muito obrigada! Eu quero finalizar os meus agradecimentos agradecendo também a Rebeka Cavalcante que fez a nossa analista de pesquisa e comunicação na AGC, que fez pesquisa, que fez roteiro, que fez toda essa fundamentação que a gente utilizou aqui nesses episódios. Agradeço também Ieda Camine que está aqui que cuida de todas as questões operacionais de todos os detalhes para que tudo saia impecável e novamente, agradecer a Suzane Jardim e a Mariana Macario, grandes referências, especialistas na área, que me deram a honra de ceder seu tempo, enfim, seu conhecimento, sua expertise pra gente vir aqui conversar desse tema tão importante.

Suzane: Foi um prazer! Adorei e é isso questionem a sorte de vocês e isso.

Mariana: Obrigada!

Arlane: Até a próxima.

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Referências

NASCIMENTO, L. Sociedade é construção (e o racismo é o cimento). Tudo nela é de se amar. Rio de Janeiro: Estação Brasil. 2021

SAAD, L. Eu e a supremacia branca: como reconhecer seu privilégio, combater o racismo e mudar o mundo. Hachette Reino Unido, 2020.

DIANGELO, R. Não Basta Não ser racista Sejamos Antirracista. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Faro Editorial, 2018.

SCHUCMAN, L. V (org). Branquitude: Diálogos sobre racismo e antirracismo. São Paulo: Fósforo. 2023.

A fina ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravatura. Portal Geledés. 14 mai. 2013. Disponível em: https://www.geledes.org.br/fina-ironia-de-machado-de-assis-sobre-abolicao-da-escravatura/

Pessoas brancas têm culpa?

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Sobre

Na segunda parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre as reações das pessoas brancas diante da temática racial e sobre que postura elas deveriam adotar nesta jornada.

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Episódio

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Transcrição

[Música]

Arlane: Quem é branco no Brasil?

Suzane: Tudo é raça no nosso país.

[Música]

 

Arlane: Quero começar esse episódio fazendo mais um momento didático, aqui, com você que está nos assistindo ou nos ouvindo. A gente está falando bastante sobre temática racial, sobre o que é ser branco, ser negro no país. Mas, no geral, quando a gente se senta numa mesa de bar para conversar ou quando a gente tá ali na mesa de jantar e de almoço com a família, a gente tem um pouco de receio de falar essas palavras. Quando alguém fala a palavra raça, racismo assusta. As pessoas começam a se entreolhar meio que com medo. Falar branco, falar negro também gera algum tipo de receio, de medo. O nosso convite é para que você se esforce cada vez mais ou para que você se desafie cada vez mais a não ter medo dessas palavras. Raça surgiu, sim, como um conceito entre aspas biológico, entre aspas científico, que visava sim dar uma noção de que os grupos sociais eram divididos no mundo entre características biológicas que significavam uma relação de inferioridade, de superioridade entre elas. Porém, esse conceito e essa percepção, essa noção caiu por terra, por isso que o científico entre aspas, porém raça continua como uma palavra válida, digamos assim, no aspecto social como um conceito social nós continuamos vivendo numa sociedade que é dividida por raças, que tem grupos sociais que são racialmente identificados e separados entre si. Racismo, então, é um fenômeno que explica a dinâmica, a estrutura das relações entre esses grupos, entre as raças da nossa sociedade. Então, não é uma palavra pra gente ter medo. Não é uma palavra pra gente temer. Na verdade, é uma palavra pra gente procurar cada vez mais conhecer. Antes da gente seguir, eu quero sugerir que você dê uma pausa nesse episódio entre lá no nosso site www.projetodeassis.com.br e faça o Teste do Conforto Racial. Ali tem algumas perguntas relacionadas ao nosso dia a dia, como que a gente se comporta, como que as outras pessoas se comportam conosco, interagem conosco e algumas reflexões sugeridas, a partir dessas questões. No final, a gente deixa ali um texto para você com algumas sugestões de leitura de aprofundamento, de provocações, de reflexões.  Justamente pra gente sair um pouco do lugar comum, digamos assim, dessa conversa e de ir derrubando um pouquinho os tabus, quanto a conversa sobre raça e sobre ser uma pessoa branca no Brasil. Depois compartilhe com a gente nas redes como é que foi o seu resultado. Bom, vou partir aqui então para as perguntas pra Mariana e pra Suzane. Vou abrir com o poema de Fernanda Bastos que eu conheci através de Sueli Carneiro. Então, olha só Fernanda Bastos:

 

Aluga-se uma preta

para ama

com muito bom leite, de 40 dias

e de primeiro parto,

é muito carinhosa,

não tem vício algum

e é muito sadia

 

Aluga-se uma preta

para ama

e também se vende a cria.

 

Aluga-se uma preta

de braços fortes e

de abundante leite

seja cativa ou liberta

trabalhadora de noite e dia

 

Aluga-se uma preta

sem filho e que saiba cuidar de menina

enquanto cuida de sinhá

á roda os senhores levam toda sua cria

 

Aluga-se preta

ama-seca muito jeitosa

o leite estancou no peito

assim como os afetos que nos cuidados ela nutria

 

Não aluga-se uma preta

caiu fraca, sem leite

sífilis e tuberculose ela tinha

 

Cobra-se o ordenado da preta

mais humilhação, violência e vilania

O senhor enganado era quem exigia.

 

 

Bom! Depois deste marcante poema quero perguntar para vocês, a partir da conversa que a gente teve nesse primeiro episódio, como que, na opinião e na expertise de vocês, a pessoa branca deveria enxergar a questão racial no Brasil? E Como a pessoa branca deveria se enxergar na questão racial do Brasil?

 

Mariana: Acho que a primeira coisa é se enxergue sabe, tome tento. É difícil até falar depois desse dessa evocação assim. Mas, eu acho que a primeira coisa que eu diria é apenas pare. Eu acho que a gente precisa parar. Não no sentido de se paralisar, mas precisa parar mesmo, porque as nossas práticas. As construções cotidianas que a gente faz são infelizmente muito marcadas por essa hierarquia, que fundou o nosso país, e eu acho que quanto antes. Eu acho não acredito que quanto antes a gente se equipa com maneiras de lidar com isso. Mais cedo a gente consegue começar a construir as ferramentas para desinternalizar. Eu acho que o lugar da pessoa branca não fugir dessa questão. Só encarrando essa de frente, a gente começa conseguir pensar em formas. Acho que tem um lado muito, não que seja fácil, mas tem um lado muito potente assim. Eu acho que essas duas coisas convivem para mim: a dificuldade que te paralisa, quando você admite as coisas, que pode paralisar no primeiro momento, mas também de olhar em volta. Eu acho que esse poema mostra o quanto do que a gente é, foi construído pela contribuição negra, mas uma contribuição que foi explorada, mas também fico sempre tentando pensar em formas de celebrar essa potência, de celebrar essa coisa linda. Então, tô tentando não me alongar, mas é difícil, mas para mim é também assim celebrando quanta potência existe hoje para mim é muito nítido que tudo de mais potente que pode fazer o Brasil ser melhor vem do que as mulheres negras estão fazendo liderando. Sueli Carneiro tudo que eu aprendi com ela, que eu aprendo com você, que eu aprendo com você. Tem muita coisa acontecendo. É difícil, mas também não é difícil. Eu acho que é se recolher um pouco, um pouco não bastante, num lugar de humildade, fica um pouco ali e depois segue, procurando um outro caminho só. Esse caminho também é muito. A branquitude é muito bosta, gente.

 

Suzane: Esse é o resumo.

 

Mariana: É um lugar de bosta. Eu não sei como é que depois a pessoa vai fazer, Suzane, para lidar assim, mas tem hora que só essas palavras, assim, conseguem expressar. É ruim demais é uma vivência muito pobre, é uma vivência, é, assim, às vezes é até difícil dar nome pra as coisas que eu olho assim e vejo. Nossa, porque ela cria uma mediocridade nas pessoas, que se valem disso, que é terrível e essa mediocridade o senhor enganado que depois exige é uma mediocridade do nosso país, quando ele é liderado por essas pessoas. É uma mediocridade da nossa vivência, assim. Então, enfim existe um mundo tão melhor que pode acontecer. Então, acho que é reconhecer. Assim, a gente não vai conseguir falar que tudo mais tem formas de fazer isso, existe muita literatura, existe apoio e existe, tem poucas, mas acho que cada dia mais pessoas brancas que estão se propondo a olhar para isso. Eu acho que tem uma inspiração absoluta da criatividade da potência das pessoas negras que sempre fizeram desse país alguma coisa incrível, mas que a branquitude vem e essas hierarquias tentam despotencializar. Mas, queria terminar falando assim procure outras pessoas brancas para conversar também, porque sempre me chama atenção como as pessoas brancas recorrem as pessoas negras para e perguntarem coisas que estão aí. Então, não é deixar de se inspirar e seguir, mas procurar uns apoios também outras pessoas brancas com quem você pode conversar, porque eu acho que são várias estratégias que vão ajudando a gente há um trabalho. Eu acho que é todos os dias, é constante, quiçá pro resto da vida. Espero que não seja pro resto da vida que a gente vai ver o que a gente vê. Eu tenho esperança de ver nesse tempo de vida ainda muita coisa diferente acontecendo, tenho visto, mas o trabalho de desinternalizar e de lutar, eu acho que talvez seja. Então, não sei, Arlane, se eu respondi, mas, nossa, esse poema mexeu demais, deu uma desorganizada aqui dentro.

 

Arlane: Deu uma desorganizada, Mari

 

Mariana: deu.  Sueli Carneiro, felizmente, sempre faz isso com a gente.

 

Suzane: Bom, eu posso ser polêmica na minha resposta.

 

Arlane: Por favor

 

Mariana: Viemos para isso.

 

Arlane: Viemos para isso.

 

Suzane:  Porque a pergunta que eu mais foquei é como as pessoas brancas devem enxergar a questão racial no Brasil e, honestamente, eu acho que vão fazer porra.  Desculpa o palavrão de novo como eu falei eu sou cristã. Enfim, eu comecei a me especializar em questão racial vai fazer 10 anos, esse ano completam 10 anos, enfim e eu tenho trabalhado com isso em organizações, em escolas e tudo mais já vai fazer uns seis por aí, seis, sete e o que eu tenho visto é cada vez mais pessoas brancas vendo a questão racial brasileira, entretanto, através de um olhar de performance, uma coisa extremamente performativa. Como assim: eu chego num lugar para falar sobre raça raramente alguém me pergunta sobre estrutura, raramente alguém me pergunta sobre hierarquia, raramente alguém me pergunta sobre questão econômica, raramente alguém me pergunta sobre lógicas de poder, mas me perguntam do criado mudo, se pode falar ou se não pode, mas, me pergunta se é preto ou negro. Gente, desculpa de coração, eu não aguento mais responder se é preto ou negro. Gente, tanto faz, é Kléber, escolhe um, tanto faz, eu não me importo certo, entendeu? Não me importo, mas é isso é uma questão de performance. Porque eu percebo que muita gente quer se aproximar da questão racial, mas não exatamente para fazer uma crítica e lidar com como o país lida com raça, eles querem parecer não racistas.

 

Mariana: E ficar confortável

 

Suzane: E ficar confortável.

 

Mariana: Continuar confortável.

 

Suzane: Exato! Eles querem ter literalmente uma lista do que eles não devem fazer, para eles terem certeza que eles vão receber a estrelinha no final do dia. A minha questão é como você deve enxergar, você pessoa branca, deve enxergar a questão racial no Brasil. Você tem que enxergar a questão racial do Brasil como algo que media todas as nossas relações. Todas as nossas relações. Se eu paro para pensar em Justiça no nosso país, isso é questão racial. Se eu paro para pensar em política no nosso Brasil, isso é questão racial. A economia, a lógica de gênero, tudo é raça no nosso país. Ai, nossa, Suzane como você é paranoica, como assim tudo é raça? Tudo é raça. Tudo é raça

 

Mariana: Uhum

 

Suzane: E esse que é o ponto, se tudo é raça, a gente tem que entender que não é só o que você fala, claro, o que você fala é relevante, nós temos sim que pegar e desconstruir o vocabulário racista, que nós aprendemos, mas, honestamente, eu estou pouco me lascando se você parou de falar denegrir, mas você continua sei lá votando em gente que acha que racismo não existe, entende, para mim tanto faz, se você olha para mim e fala ah eu nunca mais usei o termo criado mudo, agora é só mesa de cabeceira, se você apoia sei lá redução da maioridade penal, porque quem vai se ferrar com isso é preto, entende. Então, eu acho que como enxergar a questão racial entendendo que ela vai além de uma performance, ela não é sobre você ser bonzinho, ela não é sobre você ter uma série de amigos pretos, todo batendo palma para você, como você é desconstruído, ela é sobre como o nosso país funciona, é sobre quem vive, quem, quem morre, velho, sobre quem vive, quem morre. Sabe uma coisa muito curiosa. Assim, como eu falei que eu vou ser polêmica, estou nem aí das quantas. Porque é uma coisa muito louca que acontece na minha vida, eu sempre fui pobre fodida, sempre, nunca tive problema com isso, meu pai é dono de boteco. Sabe aquele boteco que vende de ovo colorido e salsicha assim aquela coisa essa? Esse é papai, desde sempre foi, assim. Eu cresci debaixo do balcão, bati microfone, foi mal. Cresci debaixo do balcão, tô viva, ótimo. Quando eu comecei finalmente a alcançar outros espaços, quando eu comecei finalmente a conseguir uma, um avanço econômico, digamos assim, foi a partir de falar sobre questão racial. Mas, eu percebi, na minha vida, que eu conseguia mais trabalho cada vez que um preto morria, cada vez que um cara preto era baleado no Brasil, eu conseguia mais trabalho, eu parei de dormir, eu parei de dormir, eu sentia culpa, eu me senti, senti um lixo. Eu achava que eu entrar lá para falar em cima e conseguir sustentar o meu filho em cima da morte de uma pessoa preta era eu estar traindo a minha família, traindo meus ideais. Eu estou falando isso aqui porque isso foi quando eu comecei a ganhar mais de R$ 1000 no mês, porque a maioria dos meus salários foram menores que isso, eu sempre ganhei salário mínimo na porra da minha vida e eu estou dizendo, porque, assim, eu sentia culpa, mesmo eu sendo estudada para cacete, especializada demais, eu tendo leitura, eu dando aulas boas. Gente, eu dou aulas boas, viu? Eu sou uma excelente professora e eu senti a culpa. O branco não tem culpa, ele está nem aí, muito pelo contrário, ele vê o preto baleado e ele fala aí, mas tudo bem agora, eu falo preto, não falo negro, porque é o correto, então, está tudo certo! Então, eu acho que é isso, sabe, entender para além da performance e entender como essas coisas, elas atingem a nossa vida para além das palavras, para além do você ser legal, não é uma questão de você ser legal, é questão de quem vive, é questão de quem morre, é questão de quem dorme no Brasil, porque recentemente eu não tenho dormido, e você? Sabe.

 

Arlane: Suzane, tem uma coisa, pensando muito na nossa, na nossa atuação, que me deixa bastante intrigada e que eu tenho feito um esforço para relevar, porque é isso, é o preto que morre gente é chamada para ir lá fazer palestra sobre racismo, é alguma coisa que acontece

 

Mariana: Para alguém poder dormir à noite com alguma

 

Arlane: Vem fazer uma cartilha aqui pra gente sobre comunicação, como ser antirracista na comunicação, mas tem uma coisa que sempre pedem é que é a chamada abordagem leve.

 

Suzane: Aí menina. Olha, não é só abordagem leve tem como você ser assim engraçada, eu é

 

Arlane: Dinâmica.

 

Suzane: e eu vou ser engraçada.

 

Mariana: não ser agressivo.

 

Arlane: não ser algo pesado, não ser agressiva, ser algo raivoso

 

Mariana: Deus me livre ofender a fragilidade branca.

 

Arlane: Exato. Assim, com o conhecimento e a experiência que a gente tem a gente sabe que existe um nível ali de maturidade.  Você tem pessoas, tem organizações, nas quais já dá pra gente chegar e ter as conversas reais, algumas, poucas, mas existem, tem umas que sim dá pra gente falar de ações afirmativas, mudar a estrutura de poder, confrontar a cultura de fato. Mas, ainda na grande parte é isso é você levar essa pauta étnico-racial muito nessa linha do que essa abordagem leve para não assustar e para não incomodar as pessoas. Então, você comentando, enfim, sobre essa vivência bastante profunda e bastante complexa, me veio esse pedido que é recorrente para nós, especialmente, para o mês de novembro.

 

Suzane: Uhum.

 

Arlane: que tá se aproximando. O mês da consciência

 

Suzane: é da paciência negra.

 

Arlane: da paciência negra. Exatamente, exatamente. Mas, quando a gente fala sobre como que as pessoas brancas deveriam ver a pauta racial no Brasil, é isso que você trouxe que é uma questão de estrutura, é uma questão de poder, não é uma questão de empatia, de afeto, de amor, de amizade, de coisas legais, não é sobre isso, é sobre poder, é sobre ceder espaço, é sobre ceder poder, é sobre compartilhar espaço, é sobre aumentar a concorrência. Isso não desliga o episódio agora. Continua aqui com a gente.

 

[Risadas]

 

Suzane: Volta

 

Mariana: Segura na poltrona.

 

Arlane: Segura. Uma das grandes preocupações que a gente encontra, especialmente, dentro de organizações e conversando com lideranças é: nossa, mas, vai mudar alguma coisa. Teve um treinamento que eu dei, gente, eu nunca vou esquecer duas sessões para um corpo de diretoria, então, cerca de 10 pessoas, tinha uma mulher, só que era diretora de RH, então, todos homens brancos e tal, cis, heterossexuais. Aí a gente identifica nessas sessões quem que são as pessoas mais detrator, aquelas que colocam um pouquinho mais de resistência, de dificuldade, que querem disseminar um pouquinho a dificuldade e você também contra as pessoas que são mais facilitadoras. Então, tinha um diretor em especial que foi facilitador, gente, durante todo o treinamento, durante toda, todas as sessões, todas as conversas, ele era aquela pessoa que vinha mesmo ali com o conhecimento ainda recente que ele tinha, mas contribuía. Enfim, colaborava para engajar os colegas dele. Nas palavras finais da última sessão, da segunda sessão, ele fala o seguinte: é porque essa conversa que a gente tá tendo aqui, a gente sabe que ela vai mudar algumas coisas, então, por exemplo, aquilo que é nosso hoje não vai ser dos nossos filhos amanhã. Isso foi uma fala que me marcou bastante e ele não falou isso de um lugar de má intenção, mas ele não, com certeza, ele não notou a profundidade desse reconhecimento que ele fez. O ponto é que quando a gente fala da pauta étnico-racial é essa a resolução, a qual esse diretor, esse homem chegou. Não que hoje o lugar que ocupa as pessoas brancas seja delas, não, não é delas. A gente tem todo um histórico aí para provar que mostra, que esse lugar foi um lugar usurpado violentado, obtido as cursas da exploração da escravidão das pessoas negras, do assassinato, do extermínio, das pessoas indígenas, enfim. Mas, o ponto é que sim, uma vez que você olha para dentro das organizações, por exemplo, e você traz mais pessoas negras, você passa a reconhecer que não é simplesmente uma questão de meritocracia, mas é uma questão de acesso histórico, contínuo a direitos e oportunidades, você vai sim aumentar a concorrência, você vai sim tornar mais difícil ocupar, continuar ocupando esses espaços que existem, que são ocupados hoje por pessoas brancas e que significa sim uma cessão e uma divisão maior e mais intensa de poder. Inclusive, a gente usa muito uma palavra, que é usa, que é que é uma palavra muito forte, mas que é usada muito nesse contexto de deixar a coisa mais leve e mais legal e não deveria, que é a palavra empoderar. Gente, como o próprio verbo já nos dá, deixa, o que é empoderar é você dar poder,  é você ceder poder, então, quem na nossa realidade, no nosso sistema, na nossa sociedade que tem hoje condição de ceder alguma coisa, de ceder algum espaço, algum poder, quando a gente fala de relações raciais, a gente tá falando de pessoas brancas, então, é dessa forma que pessoas brancas precisam enxergar a pauta racial. Sim, vai doer, sim, a sua realidade vai mudar, ela não vai continuar sendo a mesma e esse é todo o ponto. Não adianta a gente olhar pra nossa pirâmide socioeconômica, homens brancos no topo, depois mulheres brancas, depois seguidas de homens negros e por último mulheres negras e falar da questão racial como performática. Ai o que que é preto ou negro e tudo mais e achar que tá resolvido. Continuando aquela pirâmide do jeito que ela está. Essa pirâmide que a gente tem que confrontar, ela que a gente tem que mudar de ordem, achatar, é para deixar de existir uma pirâmide não é para continuar tendo uma pirâmide. Enfim, é um processo longo, é uma jornada longa. Outra palavra que a gente gosta e usa muito. Mas, é isso, é essa que é a questão racial, esse que é o cerne da proposta quando a gente fala de equidade étnico-racial e é nesse lugar que você pessoa branca precisa se ver, como essa pessoa que é essa facilitadora, essa promotora, essa impulsionadora e essa pessoa que sim vai ceder seus espaços.

 

[Risada]

 

Suzane: Desculpa. Dadinha dela, dei uma risada enorme na orelha da coitada.

 

Mariana: Caramba, isso aqui, nossa senhora.

 

Arlane: Olha pra gente finalizar, vamos usar aqui um didático de novo.

 

Mariana: Está quente, tá foda.

 

Arlane: momento didático de novo usando aqui uma expressão para facilitar as pessoas iniciantes, novamente, não desliga o episódio continua aqui com a gente.

 

Mariana: Respira.

 

Arlane: Respira, toma uma água.

 

Mariana: você vai aguentar.

 

Arlane: continua.

 

Mariana: vai aguentar.

 

Arlane: Olha só, tem uma um uma expressão que a gente usa, que eu imagino que a Suzane também conheça, que é o teste do pescoço. Vamos deixar a coisa didática aqui para quem tá começando, não tem problema, a gente ensina. Mariana falou aqui no começo da fala dela sobre reconhecimento, sobre pessoas brancas se enxergarem, começarem, parar para refletir, sair do automático, parar de achar que as pessoas marrons [referência da pergunta da filha da Mariana sobre as pessoas em situação de rua] que estão ali no sinal, simplesmente, estão ali porque é normal, porque assim, porque é uma mera coincidência, mas parar para refletir sobre isso, parar para refletir sobre a pergunta que a filha dela fez para ela. Então, uma das coisas que a gente geralmente recomenda nesse começo de jornada para quem agora, talvez na casa dos seus 35 ou 50 anos, está pensando sobre a pauta racial no Brasil é: comece a observar nos lugares que você frequenta, não precisa ir muito longe, no shopping que você frequenta, quem são as pessoas ali junto com você que são as pessoas clientes, quem são as pessoas que estão do outro lado do balcão servindo, quem são as pessoas que só de olhar você já sabe que é o segurança, que às vezes nem é necessariamente o segurança, mas você talvez até confunda com segurança. No seu ambiente de trabalho, alguma vez na sua, ao longo da sua carreira, você já foi chefeado ou chefeada por uma pessoa negra, por uma mulher negra, ou você já chegou a trabalhar com pessoas negras, você já, na organização na qual você trabalha, você tem liderança, tem pessoas negas na liderança, tem pessoas negras ali no escritório, no conforto do escritório não só na loja, não só na operação logística, não só na operação de fábrica, nas coisas que você assiste.  Tem um comentário muito interessante também do professor Silvio Almeida que ele fala assim qualquer pessoa que conheça o Brasil pelas suas novelas, e as novelas brasileiras são bastante populares fora do Brasil, mas qualquer pessoa que nos conheça pelas nossas novelas, especialmente, as mais antigas vai achar que o Brasil é um país de ar europeu, tamanha ausência de pessoas negras, se é que elas estão presentes, se elas estão presentes é isso, é empregada, é o motorista, em lugares bastante específicos e de bastante servidão, então, assim, comece a observar se há pessoas negras na cultura que você consome, nos filmes que você assiste, nas séries nas novelas, nos livros que você lê. Você já parou para pensar na cor das pessoas que escrevem os livros que você lê. Começa a fazer essa reflexão. Eu sei que de ponto de partida já vai ser muita coisa, mas é um

ótimo ponto de partido para começar a atiçar o seu cérebro e você começar a fazer perguntas que talvez você ainda não tenha feito para entender e chegar aqui à conclusão de qual que é qual que deve ser a sua visão, qual que é, qual que deve ser a nossa visão para pauta racial no Brasil, qual que é o seu lugar dentro dessa dinâmica de relações raciais. Era esse o meu último recado. Considerações?

 

Suzane: Amiga, que a gente fala depois de tudo isso, nossa!

 

Mariana: É um silêncio de louvor.

 

Suzane: Não, mas eu acho que só para concluir. Essa questão do teste do pescoço, ela precisa ser feita como movimento inicial, mas eu acho que o segundo movimento tem que ser qualificar esse teste do pescoço e eu sempre falo de qualificar, porque eu nunca vou esquecer na minha vida nunca uma grande empresa super multinacional, riquíssima, me chamou para dar uma consultoria e eu lembro que quem me contratou falou precisamos de um historiadora, porque vamos ter um grande projeto de contratação e nós gostaríamos de alguns especialistas. Eu sou historiadora eu fui chamada. Estava eu e mais algumas outras pessoas negras, cada uma na sua expertise. Aí chegou a liderança, ah liderança, todos homens, tinha até alguns que não eram hetero, mas todos brancos e aí eu lembro muito bem que távamos todas lá e aí um deles um dos líderes, simplesmente, falou: Olha, gente, antes da gente começar, eu acharia muito importante a gente ter algum sociólogo ou historiador aqui para conversar com a gente, porque não é só ser negro que qualifica esse debate e que viabiliza esse tipo de programa, vocês foram atrás de algum? Silêncio, ninguém falou nada, eu fiquei quieta também, eu fiquei esperando alguém chegar e falar: Olá, nós temos uma historiadora aqui, inclusive, ela é mestre em Ciências Sociais. Ninguém falou nada. Na hora, eu só pensei será que eu falo, será que eu vou continuar no projeto, se eu falar alguma coisa, eu fiquei calada quietinha, até que em algum momento eu, simplesmente, falei porque deu minha vez, eu falei: olha, então, para falar a verdade, eu acho que esse projeto de vocês vai ser uma bosta e que não vai para lugar nenhum. Todo mundo olhou pra a minha cara meio, assim. Falei porque desculpa vocês vieram pra sala de reunião sem sequer saber com quem vocês iam se reunir vocês, deduziram que vocês iam se reunir com pretos, e aí vocês vieram aqui.

 

Mariana: Eles estavam aqui só por causa disso.

 

Suzane: Exato. Eu sou historiadora, sou mestre em Ciências Sociais, prazer, Ok, sou formada pela USP, eu tenho várias qualificações e desculpa o projeto de vocês ele não vai sair da página um, obviamente, eu não continuei no projeto. A grande questão é eu poderia ter continuado no projeto, se a pessoa ao meu lado que sabia qual era a minha qualificação e que era branca e que não corria risco algum erguesse a mão e falasse ela é historiadora. Mas, sempre deixam pra gente e a gente perde com isso. Então, eu acho que esse recado é importante fazer o teste do pescoço e qualificar esse teste do pescoço num segundo momento, para você entender também o que você pode fazer ali naquele momento, onde você sabe que você não vai perder, mas que talvez a pessoa preta perda. Cara, eu perdi um trampo bom viu, a empresa era legal, mas, honestamente, eu não faço questão de trabalhar com aquela galera, não. Ó, eu não vou falar o nome da empresa, vocês, todos acharam que eu ia, né? Não, não quero ser processada, não hoje.

 

 

Mariana: Don’t today

 

[Risadas]

 

Mariana: Eles também, assim, não, não sei como foi para você na sequência, você está aqui contando, mas, assim, você falou, você ainda deu a chance deles corrigirem. Você entende? Acho tem, tem uma coisa que sempre me pega, sempre me pega, que é quando a crítica é colocada, porque você escolheu falar, você foi extremamente generosa de certa forma, porque você podia. Eu acredito nisso, eu sei assim, eu acho que a gente tem uma, existe algo que parece muito natural, que é a ideia de que o conforto sempre precisa estar instaurado e a gente sabe em favor de quem, é eu vou falar a verdade, eu não, eu vou tentar não ser hipócrita é muito foda, é doloroso, quando se eu tivesse lá com você nessa mesa tá? Em qualquer posição, não estaria na tua, mas das pessoas brancas que estavam ali ou do RH, que tá assessorando, é muito difícil quando você é confrontado com essa realidade, é um soco no estômago, mas você não precisa morrer com um soco no estômago, você vira e fala assim: Ok, nossa, caramba, mandamos muito mal, que merda o que a gente fez, mas você estava na sala, você estava lá, sabe, você ainda estava dizendo, assim: gente, oi, eu sou historiadora. Nossa! Assim, lamento profundamente, Aí de preferência não fica se justificando, dizendo por todos os motivos pelo qual, bla bla bla, não, não vamos pra reparação, vamos pra reparação, lamento dei um fora aqui, você é historiadora, que bom que a gente tem uma historiadora aqui, então, não tô querendo ser poliana e dizer que sempre dá para salvar. Porque eu do jeito você tá contando eu concordo estava cagada, estava desde o começo, mas eu só queria trazer esse ponto, que é, assim, Acho que Arlane passa muito por isso, você também nas tuas consultorias, eu passei, Eu e Arlane, quando a gente tá junto, a gente tenta trazer isso que é o seguinte: quando alguém está te contando que você fez merda está te dando uma chance de você reparar aquilo, então, eu tento trazer, evocar esse espírito, talvez sendo utópica, esperançosa demais, dizer assim: gente, agradeça porque a pessoa podia ter virado as costas, nem ter te contado que você falou merda, ela ainda estaria bem justificava, porque suponho que não foi a primeira vez que você passou por isso.

 

Suzane: Quem me dera.

 

Mariana: A pessoa ainda está te dando a chance, ela ainda tá ali com você.  Arlane, quando ela fala tipo, assim, não, você mandou mal, por exemplo, essa história que você contou, eu precisei que você contasse umas três vezes para entender o que você estava falando assim. Então, assim, você ainda está tendo a chance de ser confrontado com aquilo, você tá tendo a chance de reparar aquilo, sair desse ego de desculpar, justificar e vamos para reparação, a gente ainda pode reparar, às vezes, não dá mais para reparar, mas, às vezes dá, então, é tentar construir um lugar que não é o do conforto de não ser julgado, de ficar nesse lugar do eu eu eu, performático, deixa eu dormir hoje feliz e falar assim: não, a gente tá construindo algo coletivo, eu ainda estou tendo a chance de ser aceita num lugar de construção, porque tem pessoas que nem querem mais construir com as pessoas brancas, e eu nunca as criticaria. Arlane, me mandou um vídeo esses dias, que a menina branca falava assim: o que que você pessoa branca que tá ofendida com as pessoas negras, que não querem estar mais com você, não é sobre você, necessariamente, o que que as pessoas brancas fizeram para que as pessoas negras confiassem nela, muito pouco. Então, vamos daqui para frente, vamos, vamos sair desse, desse eguinho aqui que é tão confortável e tão floquinho de neve, vamos para uma construção coletiva. Podia, A sua fala foi uma fala que podia ter dado a chance das pessoas, ela deu a chance das pessoas fazerem, talvez, fazerem diferente, mas, não a branquitude quer se preservar, quer preservar sua autoimagem, é isso, é, é muito triste, assim, porque a gente podia estar fazendo tantas outras coisas, estamos aqui fazendo, estamos aqui fazendo, estamos tentando criar uma coisa que até hoje a gente não viu.

 

Arlane: Sim. As pessoas ficam no que eu chamo de cantinho da reação, ficam ali presa naquele canto e, até fazendo conexão com, que adorei, porque isso tudo se conectou ao título do episódio que é: pessoas brancas são culpadas? Geralmente, quando elas chegam nessa conversa aqui, quando elas começam a assistir um podcast como esse, por exemplo, uma das primeiras reações que a gente vê é a sensação de culpa e assim, eu acredito que até faça parte do processo e tá tudo bem, porque realmente não deve ser muito fácil você começar, quando adulto, a rever sobre a história do Brasil, a de fato aprender sobre a história do Brasil e não se sentir de alguma forma: Poxa! Como assim os meus antepassados, as pessoas, todos os fenômenos que permitiram e que permitem que eu esteja onde eu estou, que eu seja quem eu sou, Poxa, tem um histórico ali de muita injustiça, de muito massacre. Mas, assim, uma vez que você tenha essa reflexão saia do cantinho da reação, saia do cantinho da culpabilização, não é, nunca foi e nunca será sobre culpa. Tem três coisas que eu gosto de falar: primeiro é sobre reconhecimento que nós já falamos aqui, segundo é sobre responsabilidade, então, a responsabilidade veja a questão da desigualdade racial não é das pessoas negras, não é das pessoas indígenas, não é das pessoas negras e das pessoas indígenas, ela é, primeiramente, das pessoas brancas, então, responsabilidade sobre o que precisa ser mudado, sobre o que precisa ser endereçado, e a última coisa é você reagir, é você fazer alguma coisa, você agir, levantar a bunda da cadeira e começar a fazer alguma coisa em todas as dimensões da sua vida individual, profissional, em todas as dimensões da sua vida, então, assim, não é sobre culpa, nunca foi sobre culpa, sim, leve o seu tempo aí para digerir um pouquinho.

 

Mariana: liga para um amigo branco, ao invés de ligar para uma pessoa preta. Aí você conversa, gente, liga para mim, pode ligar, aí depois a gente vai pro próximo trabalho.

 

Arlane:  Sim.

 

Suzane: Não liga para mim, não estou cansada

 

Arlane: Não, para mim, pra Suzane, não. Faça essa reflexão

 

Suzane: A não ser que você me pague aí ok, aí beleza

 

[Risadas]

 

Mariana: Bem.

 

Suzane: É, é.

 

Arlane: Sim. Aí nós vamos, aí nós vamos. Mas, é isso acho que demos os nossos recados. Vamos então pro próximo episódio.

 

[Música]

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Referências

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

MCINTOSH, P. White privilege. Unpacking the invisible knapsack. Gender through the prism of difference. Peace and Freedom v. 235, n. 8, 1988.

Instituto de Referência Negra Peregum. Projeto Seta. Percepções sobre o Racismo no Brasil. IPEC, 2023.

DIANGELO, R. Não Basta Não ser racista Sejamos Antirracista. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Faro Editorial, 2018.

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva SA, 2016.

Quem tem Raça no Brasil?

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Sobre

Na primeira parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre o que é Raça no Brasil, a partir da vivência das pessoas Brancas. Elas exploram sobre como funciona “na prática” este conceito dentro da lógica da história e das relações tupiniquins.

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Episódio

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Transcrição

[Música] Quem é branco no Brasil tudo é raça no Brasil?

[Música]Tudo é raça no nosso país?

 

Arlane: Olá! Que bom ter você aqui no Projeto de Assis. O projeto de Assis é um podcast de conversas abertas, críticas, divertidas e até um pouco ácidas também sobre assuntos que no dia a dia às vezes, a gente evita. A intenção aqui é que a gente tenha conversas mais amenas como se a gente tivesse mesmo uma conversa de bar trazendo nossas experiências, nossos insights e nossos propostas para lidar com esses temas complicados. O nome Projeto de Assis é inspirado no grande escritor Machado de Assis justamente porque ele também tem essa postura crítica, ácida né? Na literatura dele, nas crônicas, nos livros, em tudo que ele produziu durante toda a sua carreira. Eu sou a host Arlane Gonçalves. Sou CEO e fundadora da AG Consultoria – uma Consultoria focada em Cultura, Equidade e Comunicação. Também sou uma mulher negra de pele clara. Me autodeclaro como parda e bissexual. Estou com tranças no cabelo, tranças loiras, até um pouco abaixo dos ombros. Estou vestindo aqui uma roupa preta, blazer, camisa, calça jeans azul e sandália rosa. Estou aqui ao lado da Suzane Jardim e da Mariana que já vão se apresentar. Nós três estamos numa sala cada uma sentada no sofá individual aqui atrás da gente tem uma TV com o logo do Projeto de Assis e entre nós tem uma mesa de centro com alguns livros, algumas canecas e alguns enfeites. Olá para vocês! Fiquem à vontade para se apresentar também.

 

Suzane: Posso ir primeiro então?

 

Arlane: Claro

 

Suzane: Ok! Grande prazer estar aqui conversando com vocês. Meu nome é Suzane Jardim. Eu sou uma mulher negra de pele clara. Me autodeclaro enquanto parda. Sou uma mulher cisgênera, bissexual e mãe de um garotinho de 14 anos também bissexual. Gente, quanto trabalho que eu tô tendo nessa vida, mas enfim… Eu tô vestindo uma blusa sem mangas azul e uma calça vermelha com uma bota nos meus pés. Eu tô muito contente de estar aqui com vocês hoje eu espero que a gente consiga ter essa conversa ácida com bastante qualidade e que a gente consiga dar umas risadas também porque eu acho que é importante né?

 

Arlane: Que assim seja.

 

Mariana: Olá! Eu sou a Mariana Macário também tô muito feliz de estar aqui eu acho que ter conversas ácidas e desconfortáveis é inevitável para a gente lidar com as estruturas que a gente tem no nosso país. Então, ficou muito feliz de a gente ter aqui um ambiente onde a gente pode fazer isso. Eu sou uma mulher branca, cisgênero, sou mãe de duas e madrasta de uma. Tô vestindo uma blusa branca, brincos roxos e tenho um cabelo na altura dos ombros meio enrolado, meio liso, meio indeciso. Espero que a gente tenha ótimas trocas aqui. Arlane muito obrigada por começar esse projeto e agradeço, Machado de Assis, por essa inspiração maravilhosa.

 

Arlane: Eu que agradeço pela presença e pela honra de ter vocês aqui! Bom, Suzane e Mariana vamos conversar sobre quem tem raça no Brasil. Antes de eu trazer algumas perguntas muito fáceis para vocês. Quero compartilhar algumas das coisas algumas coisas que já sucederam aqui no nosso país alguns marcos que a gente tem quando falamos de raça de autodeclaração e identidade racial. Tem um dado muito interessante de um censo. O censo do ano de 1980 e recebeu cerca de 136 nomes diferentes para cores declaradas por pessoas não brancas. Então, você teve pessoas se autodeclarando como: a castanhada, agalegada, amarela queimada, amarellosa, a morenada, azul, azul marinho, bem branca, bem clara, bem morena, cor de ouro, cor-de-rosa, cor firme, encerada, enxofrada que mais … mais nomes interessantes aqui: loirinha, marinheira, meio amarela, meio branca, morena bronzeada, morena bem chegada, mista, morena canelada, morena castanha, morena clara, morena cor de canela, morena fechada, morenão, roxa [risada]. Tem mais alguns últimos aqui interessantes: pálida.

 

Suzane: Eu tenho os meus favoritos dessa lista. Eu gosto do puxa para branca. Eu gosto do verde também porque quem respondeu verde eu acho que transcendeu.

 

Arlane: Transcendeu. O azul a gente até consegue visualizar. Vamos ver… Quase negra, queimada, queimada de praia, queimada de sol, regular, rosada russo, sapecada, sarará.  Enfim, tostada, trigo, enfim, né? Vários nomes aqui super interessantes.

 

Mariana: Estou completamente fascinada.

 

Arlane: Sim, isso lá em 1980. Algumas bolinhas aí atrás. Bom, saltando aqui para 2023, a gente tem o mais recente censo do IBGE, realizado no ano passado 2022, que encontrou por exemplo 10,6% de pessoas se autodeclarando como pretas né? Então, o maior índice de pessoas se declarando como pretas até hoje. Também 42,8% da população se identificando como branca e 45,3% se identificando como parda. Inclusive foi a primeira vez também que alguém do IBGE bateu lá na minha portinha e aí eu tive a oportunidade me autodeclarar como parda né? Dentro do censo e responder outras coisas também achei bastante interessante essa experiência. Bom, refletindo sobre essas várias coisas aí, do nosso passado, do nosso presente. Queria começar perguntando para vocês, então, quem é branco no Brasil?

 

Suzane: Depende de qual a definição né? Porque se a gente for no senso comum, na galera. Assim, geralmente se você faz essa pergunta vamos dizer ninguém porque eu tenho a minha avó que era negra, que era a índia, branco no Brasil não tem disso é só na Europa que é todo mundo misturado imagina nem tem branco aqui. Então, assim, depende né? A grande questão é entender como é que funciona as hierarquias na vida real. Porque apesar da gente ter essa ideia muito baseada numa experiência europeia e norte-americana. A hierarquia racial no Brasil. Ela existe e ela coloca enquanto branco a pessoa que mais se aproxima do padrão europeu e norte-americano que é considerado branco até então. É muito interessante essa pergunta porque aqui no Brasil a gente tem uma população que se reconhece enquanto branca para ser 42 né? Eu esqueci agora qual foi a porcentagem que você cintou, mas, é mais de 40% né? Que se autodeclarou branca no censo. Mas, na hora de falar com alguém eles têm de certo modo vergonha de dizer que são brancos. Ah, eu sou branco, mas eu não sou tão branco assim, porque minha bisavó era índia. Eu não sou tão branco assim, porque… Então a gente tem uma noção um pouco errônea. Exatamente porque aqui no Brasil a gente lida com a raça de um lado bem diferente da experiência europeia. Então, branco no Brasil, ele tem muito a ver com essas hierarquias. Ele tem a ver com essa proximidade em relação ao padrão do que se considera um branco puro, bonito e tudo mais. Mas, ele também tem a ver com a vergonha que ronda por aí que ela é muito sintomática sobre como a gente não fala de raça no nosso país e isso há séculos não é de agora né?

 

Mariana: Concordo totalmente eu acho que é bem confuso pensar que branco tem a ver com você pegar um pantone né? E colocar as pessoas numa ver se a cor de te se aproxima daquilo. Acho que as pessoas [pausa]. Que bom de onde eu falo. Eu falo de alguém. Eu nunca tive assim dúvida de que eu era uma pessoa de pele muito clara, mas, isso é completamente diferente de começar a entrar na conversa sobre raça entendeu? Que é raça entender como que essas hierarquias são ou não declaradas, então falando desse lugar. Assim, porque não tem a ver exatamente como pantone. Tem a ver, na verdade, não tem nada. Tem a ver com essa hierarquia né? Como que essa hierarquia que se relaciona assim com a cor da pele. Ela não é completamente descolada disso, mas ela é muito mais complexa. Então, como você estava dizendo tem a ver com um contexto, tem a ver com o lugar. Então, por exemplo né? Dois assim para mim que deixam isso bastante concreto até três. O Primeiro: pessoas como eu como eu né? Que sou me sinto bastante branca aqui no Brasil. Sei que tem pessoas que são bem mais brancas que eu, no sentido de estarem ainda mais no padrão europeu, mas, quando eu vou para os Estados Unidos é muito fácil me chamar de latina e a primeira vez que isso aconteceu. O primeiro tudo que quer ser Latina e tem uma outra conversa sobre isso. Você fala poxa são as hierarquias. Onde tem alguém muito mais branco você é colocado e não é só a cor da pele. Exatamente ser brasileiro né? O Outro exemplo: é quando a Lia Vainer Schucman, que é uma autora que reflete sobre a branquitude. Uma das poucas pessoas brancas que reflete sobre branquitude. Coloca nas entrevistas que ela fez para o doutorado dela que as pessoas aqui em São Paulo é que, por exemplo, eram, no caso das entrevistas, eram cearenses e por ter a pele clara se colocavam como brancos, mas, muitas vezes. E aí não vem aqui um julgamento. A gente sobre a atitude das pessoas não é uma das responsabilização, mas é como as hierarquias incentivam as pessoas oprimirem para se colocar num lugar de não negro né? Mas, ao mesmo tempo sendo oprimido pelo fato de não serem de São Paulo. Todo estereótipo do que ser nordestino com muitas aspas aí. E a terceira exemplo que eu daria assim são as pessoas que por exemplo tem vamos chamar de árabe né? Uma coisa que a gente chama de árabe aqui no Brasil. Todas as nacionalidades os estereótipos ligados essa região do mundo não são racializados. Então, por exemplo meu marido que por ele misturas da genética. As pessoas vivem perguntando se ele é entre aspas de novo árabe o que quer que isso significa para ser relevante aqui para ele. Ele não é discriminado por isso. Quando ele estava na França por um passeio disseram para ele na rua vai embora daqui. Então não é a mesma coisa não é a mesma coisa nos lugares. Então, para retomar aqui terminar minha fala. Eu acho eu acho que você falou uma coisa muito importante também da branquitude que não se declara. Então, assim, eu sei que eu sou branca, mas se eu admitir isso hoje no Brasil eu vou estar admitindo um lugar de muito significado que mesmo sem a intenção tem uma série opressões costuradas. Então, é uma branquitude que se disfarça né? Para não se responsabiliza, para fingir que raça não existe, mas aí você conversa para o próximo episódio.  Não sei se acho que a gente vai falar da raça que não existe. Então de um lugar de neutralidade e desresponsabilização.

 

Arlane: Total! Gente, é enquanto vocês falavam [pausa] tem duas, tem duas palavras que eu sempre associo quando eu vejo pessoas brancas ou quando a gente estuda sobre o tema demonstrando uma dificuldade de se autodeclarar: uma é pureza e a outra é merecimento. Ou seja, existe uma ideia de que para você ser branco, você tem que vir dentre aspas de uma linhagem pura. Mas, se você tem alguma miscigenação, se você tem alguma, tem passado não branco na sua família né? Na sua origem, logo você não é uma pessoa branca. Ou seja, logo você não merece se autodeclarar como uma pessoa branca.  Isso é muito interessante. Uma vez, eu estava conversando com uma executiva claramente branca não havia nenhum tipo de dúvida né? Tem algumas pessoas que às vezes está no limbo. A gente fica na nossa o que é essa pessoa. Não era o caso dessa mulher. Não somente uma pessoa branca, mas uma pessoa de classe alta.  Enfim né? Com vários recortes ali que colocavam ela no lugar bastante da branquitude e aí ela comentando que certa vez ela estava conversando com uma pessoa e precisou fazer autodeclaração racial. Porque ela tem cabelo preto, ele se autodeclarou como morena.

 

Mariana: Essa palavra merecia um episódio inteiro né?

 

Arlane: ó senso ali de 1980 de novo né? A gente não se livrou dele. Essa pessoa com quem ela estava conversando acontece de ser uma mulher negra. Era uma mulher negra e essa pessoa a corrigiu falou não você não é morena. Ela não então eu sou parda. E aí eu fui lá explicar para ela né? Como que funciona a identidade racial brasileira que através do fenótipo da aparência, ou seja, não é necessariamente, na verdade, não importa a sua ascendência né? A sua linhagem se é pura ou se é miscigenada. Novamente entre aspas né? Mas, assim, sobre a sua aparência física sobre como que as pessoas te veem, te interpretam, te trata.  Ainda assim ela continuava não porque branca eu não sou branca, eu tenho uma pessoa indígena na minha família, antepassado indígena na minha família. Branca, eu não sou branca, não sou. Quase que um medo de fato né? De se autodeclarar dessa forma de se dizer dessa forma, então, é algo bastante interessante de notar porque [pausa]. Outra reflexão que eu tive esses dias conversando com uma outra pessoa, uma outra mulher negra, também foi o seguinte ela falou assim: Arlane, pessoas brancas tem um altíssimo. Embora elas não falem, embora isso não seja uma conversa né? Elas têm um altíssimo nível de consciência racial e de consciência de classe no Brasil. Eu achei isso assim de explodir mentes porque eu nunca tinha parado para pensar dessa forma né? Você tem um grupo de pessoas ali que vão se juntando se protegendo mantendo seus relacionamentos né? Cida Bento, chegando aqui de novo na conversa. Então, independente de falar em abertamente se reconhecem dessa forma. Independente de se posicionarem ou de conversarem sobre raça ou qualquer que seja temática relacionada. É assim que elas, geralmente, se comportam.

 

Mariana: É um pacto tão forte que ele não precisa nem ser anunciado.

 

Suzane: Exatamente! E, que tem totalmente a ver com a nossa história. Porque muita gente é faz esse tipo de coisa do eu não sou branco, imagina e tudo mais sem entender o quanto isso é um filme histórico que dura séculos. O Brasil quando ele acaba com a escravidão né? Daquele jeito totalmente questionável e tudo mais deixando uma série de resquícios. Ele quer se colocar como lugar extremamente diante dos outros lugares da América Latina. O Brasil, ele sempre teve uma população negra, extremamente alta, extremamente grande. Uma população negra que estava ali escravizada, sendo colocada. Quando a escravidão acaba a ideia é essa população negra não pode ser a cara do Brasil. A cara do Brasil precisa ser outra coisa. Então, o Brasil vira o lugar do brasileiro. Quem é o brasileiro? Ah, o brasileiro miscigenado, o brasileiro [pausa] ele adora valsa, mas ele adora samba, ele adora futebol, ele adora caipirinha. Não tem branco no Brasil. Também não tem preto no Brasil. Principalmente, não tem preto tá? Esse era o grande recado que davam. Tanto que não é à toa que a gente fica até surpreso com mais de 10% da população, atualmente, se autodeclarar como preta. Porque antigamente, depois do fim da escravidão, esse tipo de autodeclaração era extremamente rara porque as pessoas elas não se autodeclaravam, enquanto pretas porque havia uma carga extremamente pesada. Extremamente pesada. Eu posso dar um exemplo da minha mãe. Minha mãe vai fazer 70 anos agora. Faz uns cinco anos que ela começou a entender que ela é preta e ela é retinta. Ela sempre dizia preta não sou, preto mesmo é aqueles africano aí. Eu ficava, amiga. Olha onde você tá. Para ela isso fazia sentido porque a gente é periférico. A gente é da cidade de Diadema, São Paulo. O que tem mais lá é preto, o que tem mais lá é retinto. Então, se criava um padrão desde esses tempos mais antigos para você se destacar. Minha mãe que é uma mulher preta retinta. Ela dizia preta eu não sou eu sou morena. Certo e aí ela conseguia dentro disso criar uma hierarquia própria para se colocar como alguém que não merecia o racismo que sofria. Isso era muito triste de se ver porque ela sofria ações de racismo o tempo inteiro e ela falava para mim, eu lembro muito bem disso, que ela não entendia porque preta ela não era. Então, assim, a gente tem esse histórico que tem a ver como o Brasil se constituiu, que tem a ver com a identidade nacional que foi se criar não é à toa né? Que nossos heróis nacionais se você vai lá jogar no Google Tiradentes. Ele é Jesus Cristo. Não é mesmo, gente? Ele tá lá branquíssimo, olhos claros, barba. Tem todo aquele imagético que tenta criar os heróis nacionais como se fossem brancos europeus. Quem é o negro no Brasil? Negro, ele é legal. Ele é legal para formar o brasileiro, certo? Porque o futebol, porque o samba, porque aquilo, porque aqui. Mas, ele não é a identidade do brasileiro. A identidade do brasileiro é o moreno. Quando você adota essa identidade, você coloca debaixo do tapete as hierarquias e as identidades reais. É isso que a gente chama da tal da ideia da democracia racial né? Você criar toda uma lógica: onde não se nomeia ao mesmo tempo que essas hierarquias elas estão presentes o tempo inteiro. Eu posso falar isso porque enquanto filha de uma mulher negra retinta, eu vi o racismo que ela sofria no cotidiano independente dela dizer sou preto ou não sou. O racismo estava ali exposto e eu sempre falo. Eu sofria racismo quando era mais jovem? Sim. Entretanto, racismo que eu sofria ele era de outra ordem. Eu lembro que na escola não me chamavam de macaca. Quem era chamada de macaca era umas pessoas retintas, mas eu era chamada de baiana suja. O que quer ser suja? Quando você pensa em raça.  O que que é você ser colocada como alguém que tem a pele suja? Isso é uma hierarquia. Onde você coloca a pessoa da pele clara, enquanto, o grande padrão né?

 

Mariana: Então, e aí você cria um polo, uma opressão extremamente poderosa porque ela não se nomeia. Porque ela organiza né? A gente tá falando de hierarquia né? Essa palavra é muito poderosa? Porque tem quem tá em cima e quem tá embaixo. Todo uma escada que vem. Onde você [pausa]. Eu fico imaginando. Às vezes eu fico também refletindo, assim, né? A opressão do valor de ser branco atraindo as pessoas. Querendo atrair as pessoas para se afastar da identidade negra e tanto por achar elementos para que você [pausa]. Eu acho que não cabe as pessoas brancas elaborar a subjetividade das pessoas negras, não deve ser. Não cabe comentar, mas tô falando não de lugar de entrar na mente. Mas, eu fico olhando a branquitude operando, operando para dizer assim: vem para cá, se despolitize, se afaste desses valores para vir para o lado do branco. Mas, é um canto da Sereia porque vai [pausa]. Eu penso que é para despotencializar desse outro lugar. Onde você vai se unir, você vai questionar. Isso também claro que de uma forma completamente diferente também. Aí é o pacto narcísico dos brancos vai querer dizer não fale, não nomeie. Aí agora. Estou um pouco na dúvida. Mas, é a Cida Bento. Quando fala do pacto, ela fala branco: não sei, não vi, não comento, não fale. Então, uma coisa que fecha os olhos mesmo. Lembrei também da Sueli Carneiro quando ela propõe né? Tirando o branco é tudo preto. Para juntar mesmo. Para trazer essa coisa. Fico até arrepiada e para [pausa]. Quando ela [Sueli Carneiro] diz assim: Vocês que são brancos. Vocês que inventaram esse negócio aí. Vocês que elaborem isso né? Para a gente, como pessoa preta, juntando assim. A gente vai se unir, assim. Então, eu acho isso muito potente porque denuncia essa coisa que não se nomeia. Mas, que é muito poderosa. Mas, que eu penso que é isso atrai para despotencializar. Enfim, tirar riqueza, tirar a cor, tirar complexidade. Bom, se embranqueceram até o Machado de Assis né? Se embranqueceram Jesus e Machado de Assis. Mas, ele [Machado de Assis] tá. Ele tá aqui. Gente, não sei se vocês estão vendo, mas, ele tá aqui. Ele tá aqui pretinho. Tá tudo então

 

Arlane: Quem escapa? Embranqueceram Machado, Jesus. Vai todo mundo no embranquecimento.

 

Mariana: São infinitas [pausa]. Espero que não sejam, mas parecem infinitas as ferramentas. Mas, elas hão de não ser.

 

Arlane: Enquanto, a Suzane comentava a experiência dela na escola, por exemplo. Tem uma reflexão que sempre volta a minha cabeça, quanto a raça, que é quem que tem, quem é que pode se considerar, quem é que pode tem que ter um privilégio de se considerar, de se autonomear. Eu lembrei também de uma fala do professor Silvio de Almeida. Ele contando que um dia criança foi para escola e estava muito frio aqui em São Paulo. Então, ele tava usando um gorro né? Assim como todos os demais coleguinhas dele da sala de aula usando gorro e aí quando ele chega na sala de aula a professora vai lá e tira o gorro da cabeça dele e aí fala não você não pode usar o gorro. Ele fala mais porque todos os meus coleguinhas estão usando e ela responde não porque senão você parece bandido. Ou seja, tem um grupo né? Tem uma parte aqui do Brasil que pode se autonomear. Se dizer Branca. Se dizer não branca. Ou até se autodeclarar como parda porque se vê como miscigenada, mas tem uma outra parte que é isso né? É a baiana suja, macaca. Ou seja, a sociedade já está nos dizendo

 

Mariana: É outro. É alteridade.

 

Arlane: É outro já dizendo isso para gente.

 

Mariana: Mas, se tem um outro tem um padrão.

 

Arlane: Exato! Isso se conecta a uma outra coisa que você mencionou que foi sobre a ideia de que ok uma vez que eu coloco o pé para fora do Brasil. Quando vou lá para Europa. Quando eu vou para os Estados Unidos. Eu não sou uma pessoa branca, eu sou uma pessoa latina. Então, não existe, não existe branco né? Eu confesso que eu acho isso um pouco engraçado

 

Mariana: Para dizer o mínimo.

 

Arlane: Para dizer o mínimo. É porque assim o fato de você. Se eu, Arlane, se eu vou lá para Europa Ok. Eu posso ser chamada, considerada latina. Eu ainda serei negra. Eu ainda serei vista como negra. Então, as pessoas brancas do Brasil ainda que lá fora vocês estejam numa hierarquia inferior em relação as pessoas brancas de lá e sejam chamadas de latinas. Vocês continuam sendo vistas também como brancas. Uma coisa não exclui a outra.

 

Mariana: É verdade.

 

Arlane: É uma coisa, assim, muito surreal. E, de ver pessoas que tem conhecimento da pauta étnico-racial, de pessoas que têm acesso essa informação, que inclusive trabalha com essa informação, se autodeclarando como pardas porque estão pressupondo que a hierarquia racial brasileira está submetida aqui no nosso contexto interno a uma hierarquia. Uma pretensa hierarquia externa, internacional. Não porque assim branco é quem tá lá na Europa. Branco é quem tá lá nos Estados Unidos. Então, eu tô aqui no Brasi, não

 

Mariana: Então, concordo. Junto com isso o que me gerou muita reflexão ao descobrir que as pessoas conforme a vida, principalmente, profissional. Me foi vendo, mais do que estar nesse lugar ver pessoas. É bom, [pausa], posso falar aqui também. Também passei um pouco por isso. Mas, as pessoas perceberem que branco é uma ideia. Eu acho que essa. Esse deslocamento. Esse deslocamento. Olha só, então, a pessoa branca, ela tá no Brasil fingindo que essa hierarquia não existe. Mas ela [pausa]. Acredito eu que ela está fingindo. Essa consciência racial que você falou, que Cida Bento fala do pacto. Ela [consciência racial] está operando né? Mas, a pessoa está dando para fingir que essa hierarquia não existe. Aí quando existe esse deslocamento a pessoa, um pouco [pausa]. Ela não dá mais para fingir que essa [pausa] que esse ideal não existe. Então, é como se parece que admitir: poxa, existe uma ideia de branco. Eu acho que última instância talvez podemos dizer que ela nunca é atingida. Porque quanto mais ideal ela for, mais as pessoas ficam tentando ser brancas. Acho que a gente precisa falar: Ser branco não é só alvura da pele. É reproduzir uma série de valores. E não sei que que é mais cruel: se é você poder passar com esse fenótipo ou reproduzir. Acho que é igualmente cruel. Então, assim, é aí é falar de colonialismo. Como você fala assim: nossa, então lá eu podia me valer mais dessa vantagem, aqui essa vantagem tá um pouquinho diferente. Para algumas pessoas pode ser uma oportunidade de ser confrontado com a existência. Mas, como a teoria da consciência racial mostra você confrontado não necessariamente significa que você vai usar aquilo para, se para tentar, se desinternalizado mesmo né? Você pode continuar negando e pode ficar até mais. Às vezes, a negação fica até mais forte, a partir do momento que você precisa admitir, que aquilo existe. Mas, é isso outros 500 né? As encruzilhadas do, da confrontação dessa realidade.

 

Suzane: Fora que tem o fato básico de que o que é identidade latina dentro do Brasil. Todos nós somos latinos de certo modo. O que isso informa sobre raça para gente? Nada. Nada. A gente só tem uma informação e uma hierarquia sobre raça, a partir da identidade latina, quando nós saímos do Brasil, por quê? Porque dentro da nossa história, dentro do projeto de embranquecimento nacional que é um projeto que se aplica. Literalmente, é um projeto são intelectuais, são instituições que vão pensar no embranquecimento do Brasil. Dentro disso que ocorreu na história. Vocês podem jogar no Google. Vamos lá Google, gente. Embranquecimento Nacional. Procurem sociedade eugênica brasileira. Tá tudo aí. Existem os dados. Dentro desse projeto de embranquecimento, a identidade da latina, ela não informa. Todo mundo no Brasil é latino. Todo mundo é igual no Brasil? Porque desculpa. Tem aquela coisa básica né? Se você acredita que todo mundo no Brasil é igual e todo mundo no Brasil tem as mesmas chances, você olha ao redor e vê que quem tem o poder econômico é branco. Quem tem hegemonia na mídia é branco. Quem é a grande liderança das organizações é branco. Então, você tá querendo me informar que os brancos são melhores. Porque esse afinal de contas todos são iguais e a maioria é branca. Você tá querendo me dizer que você concorda que branco são melhores, certo? Se não você tem que pensar, o quanto isso informa sobre como a gente constitui raça no nosso país. E, que a lógica da identidade latina, ela não tá aqui. Ela não está aqui. Ela não informa sobre a nossa história. Ela não informa sobre como o Brasil se constitui. Claro, seria lindo né? Imagina a gente super empoderado é latinos. Uhu! Mas, a nossa história é outra a nossa história. É outra. E, para mim, eu acho muito sintomático. O quanto várias e várias vezes pessoas brancas pararam para falar comigo e dizer eu entendo que vocês sofrem porque quando eu fui para Amsterdam, para Alemanha, para Colorado blá blá blá blá. Gastar o meu dinheiro de branco lá. Eu fui chamar de latino e doeu.

 

Mariana: Eu também sofri que era isso que você estava falando.

 

Suzane: Aí eu penso putz deve ter sido foda hein? Olha sinto muito por você quer é um abraço? Sabe

 

Mariana: Mas, você tem um lugar para voltar. Olha que coisa.

 

Suzane: Onde você pode estar seguro.

 

Mariana: É o país que você nasceu.

 

Suzane: Exato. Onde você nasceu

 

Mariana: Não é bom?

 

Suzane: Onde você será abraçado. Porque eu vou ser sempre a baiana suja. Independente de eu estar no Brasil ou tá em Amsterdam. Colega, inclusive, eu não vou ir pra Amsterdam porque eu não tenho essa grana não. Porque os meus pais, minha mãe preta, blá blá blá. Não teve essa herança histórica para guardar o suficiente, para usufruir dessa forma.

 

Mariana: Que triste ter que viajar para entender

 

Suzane: Exato, né? Colega, meu sonho!

 

Mariana: e, não enxergar o próprio país né? Mas aí você volta para cá e sei lá. E, tudo continua igual. Não precisaria viajar para ver tudo isso. A gente está exposto a isso desde sempre.

 

Arlane: É uma relativização constante né? Tem tanto esses comentários de viagens aos exteriores e experienciei alguma coisa que me fez ficar e me senti ofendido, ofendido. Quanto a analogia com roupas, por exemplo. Ah não, porque aí se eu for a um shopping de bermuda, aí eu vou ser maltratado, o segurança vai pedir para eu me retirar. Como se assim, né? Como se tem algum nível isso fossem coisas comparáveis. Experiências comparáveis. Quando a gente fala de raça, racismo. A gente tá falando desde alguém ser preterido de uma oferta de emprego ou tem um histórico de não acesso aos direitos oportunidades. A pessoa sendo mortas aqui no Brasil a cada 23 minutos pela polícia por serem pessoas negras. Homens negros sendo mortos, porque tá com guarda-chuva na mão. A polícia confunde com uma arma de fogo. Famílias sendo alvejadas pelo exército com 80 tiros. Enfim, é uma coisa muito mais profunda muito mais

 

Suzane: Não só é muito mais profunda. Porque você falando essa coisa das roupas me lembra o dia que eu conheci a Lia Vainer. O dia que eu a conheci, a gente estava papiando. Tomando uma cerveja. Trocando uma ideia. E, ela me falou de uma das entrevistas que ela fez no mestrado. Onde ela foi entrevistou pessoas em situação de rua para perguntar para essas pessoas o que era ser branco. Assim, ela estava falando para mim porque ela fez a mesma pergunta para pessoas de classe mais alta que relativizaram totalmente. Ah, não sei o que é ser branco porque eu sou brasileiro blá blá blá blá blá blá. Mas, quando ela perguntou para uma um rapaz branco em situação de rua. Ele olhou para ela e falou: ah eu acho que é poder entrar no shopping para cagar.

 

Mariana: Exatamente.

Suzane: Ele falou essa frase e assim, a gente riu na hora da mesa. Mas, cara vocês já pararam para pensar nisso o quanto realmente é sintomático.

 

Mariana: Eu acho que você ri até porque é tão difícil lidar com uma coisa tão [pausa]. É quase inominável, de tão básico, concreto e fundamental.

 

Suzane: Exato.

 

Marina: Porque você tem que ser confrontado com uma coisa tão fundamental que todas as construções teóricas, que a gente vai fazendo. Eu aprecio muito as construções históricas que a gente faz. Mas, aí de repente, você [pausa] É um tapão na sua cara de que é tão básico. Desculpa, não queria te interromper.

 

Suzane: Magina

 

Mariana: Mas, é difícil… assim.

 

Suzane: É muito doido isso porque eu fiquei pensando: cara, é isso foda-se a roupa. Foda-se. Desculpa falar palavrão, gente foi mal. Tá geral. Eu sou cristão. Mentira.

 

[Risadas]

 

Suzane: Mas, enfim perdão pelo palavrão. Mas, é realmente você já pensaram que assim o que define necessidades fisiológicas de uma pessoa e possibilidades é a cor da pele. Sabe uma pessoa em situação de rua, ela realmente por mais que seja mal vestida blá blá blá. Por ela ter uma cor da pele. O que eu achei mais magnífico de quando ela deu esse exemplo é a pessoa reconhecer. Porque a pessoa todo mundo fala isso para mim. Eu sou professora, sou historiadora, professora e eu comecei a minha vida enquanto professora dando aula sobre questão racial em periferia. Diadema. Maioria preto e muito branco. Muito branco também porque na periferia tem branco pô tá lá. E, aí todo mundo fala nossa deve ser tão difícil né? Porque o branco da periferia ele não vai conseguir falar de raça, porque afinal de contas ele também é um branco que tá ali sofrendo com a questão de classe. Não. Na real, o branco da periferia, ele tem essa consciência. Assim, porque ele sabe que se ele coloca uma roupinha melhor, ele não é parado pela polícia igual os amigos dele são. Eu ouvia isso o tempo todo da galera ali. Muitas vezes havia inclusive impactos de sobrevivência. No sentido de meu amigo preto mora naquele lugar, eu que sou branco vou com ele porque aí eu tenho como proteger. Então, é muito perverso isso né porque as pessoas acham: Ah não, o branco periférico. Ele não vai conseguir entender esse papo imagina. Olha como vocês são acadêmicos.

 

Mariana: Como se você precisar dessa grande construção. Não. A vida cotidiana mostra para todo mundo.

 

Arlane: Como se fosse muito teórico.

 

Mariana: Quando você falou da mulher branca é eu. É muito cruel que eu vou falar e sempre acho que dói, assim. Mas, assim, hoje se eu tivesse com uma pessoa assim. Eu não ia talvez ter muita paciência com as minhas. Com os meus colegas. Pessoas que estão comigo nessa jornada de ser branco e não querer admitir. Fala assim. Me fala uma coisa, quantas vezes a catraca travou para você? Eu tenho certeza que essa pessoa sabe. Só que ela fecha o olho para quem a catraca trava. O que me faz pensar. Quando você tá falando disso de quem, de quem olha para o outro. E, quem não olha tem que ir para os Estados Unidos para pensar e aí você volta. Me parece um pouco. Não dizendo que é a mesma coisa. Mas, me dá a mesma sensação de quando um homem fala assim: Nossa, agora que eu tive uma filha, eu consigo pensar sobre o machismo. E, eu pensando assim, primeira coisa que eu penso. Nossa você teve uma mãe não pensou sobre isso. Você nunca conviveu com mulheres. Mas, eu vou voltar para a questão racial. É real que eu estou falando. Assim, eu passei por isso durante muitos anos é tão. São tantos mecanismos para colocar você a serviço. Colocar todas as pessoas a serviço dessa hierarquia, que daí eu fico pensando imagina uma pessoa, né? De 30, 40 anos 20, que seja branca né? Identificada como branca que vai para um país. Aí ela volta. Aí eu fico pensando: Nossa ela, eu, a gente nunca olhou para o lado. A gente nunca. A gente olha para o lado. A gente vê, mas você cria os mecanismos para em última instância desumanizar né? É uma desumanização. Se você tá vendo, toda hora que tem alguém para quem é catraca trava e para você as portas se abrem, né? Para você, o segurança corre para não causar nenhum. Para você que eu digo uma pessoa branca. Nem obstáculo para você entra em outro lugar. Enquanto, para outro não é assim que as coisas se dão. Você vê todos os dias na TV. Quem é preso. Quem não é. Você vê todos os. Assim, infelizmente esse é o país que a gente. Gostaria que não fosse. A minha filha, quando ela tinha três anos. Ela falou. Quatro, assim. A gente estava na Avenida do Estado. Farol fechou. Era de noite. A gente estava voltando de viagem. Nunca esqueço. Ela olhou para mim e falou assim porque são sempre as pessoas marrons que estão na rua pedindo dinheiro. E, aí eu falei é agora, né? Assim, porque uma pessoa branca de acordo com os estudos é com 30 anos, que ela vai ter uma conversa sobre raça. Se é que ela vai ter. Se é que ela vai ter [pausa] descobrir que ela tem raça, né? E, a gente sabe que todos. Não existe raça. Todos temos raça. Mas, a gente sabe que com as pessoas, que não tem a alvura na pele, ou, todas essas vantagens não são com 30 anos. Então, só trouxe esse exemplo dela para dizer que, assim, é hora de nomear, porque ela tá enxergando um padrão. É inacreditável os mecanismos, que vão existindo pra gente fingir que o padrão não existe. Você não precisaria viajar para nenhum lugar para ver. Então, é porque a gente não vê as pessoas. A pessoa branca não vê a pessoa negra como seu irmão. Chame do que for como ser brasileiro, cidadão, como cidadão, irmão, como seu igual, né? Então, um mendigo. A pessoa em situação de rua. Me Perdoe! A pessoa em situação de rua. Ela está vendo. Todos nós estamos vendo. Não tem.

 

Arlane: Ela tá vendo. Ela tá reconhecendo, né? E, aí fica pensando nos mecanismos para fingir que não veem o pacto. Para todo mundo fingir que não vê.

 

Suzane: Nossa, inclusive muito rapidamente. Eu lembro de uma situação que eu falei: – hoje, eu vou ser demitida, é hoje. Porque eu estava dando aula em uma escola. Eu fui contratada, enquanto professora para trabalhar no projeto. Surgiu o assunto raça e aí uma moça muito legal, muito educada, muito simpática. Ela, simplesmente, disse ai, mas, é que crianças, elas não veem cores, né? Crianças. Elas têm essa pureza tanto que um dia, eu estava com meu sobrinho de uns 6 anos no mercado. E, meu. Enfim, ela disse que estava com sobrinho de 6 anos no mercado e passou um homem negro retinto. E, o menino começou a gritar. O menino começou a gritar em pânico no meio do mercado, apontando para o rapaz e dizendo tia Tia: – Olha, ele é preto, ele é escuro.

 

Mariana: Ela estava falando as duas coisas completamente [inaudível] ao mesmo tempo.

 

Suzane: Ela veio e me falou isso.  Ela disse: – Mas, porque, porque ele é inocente. Não é porque ele é racista. É porque, simplesmente, a criança de 6 anos nunca tinha visto alguém daquela cor. Então, ela se manifestou daquela forma. Eu olhei para a cara dela. Eu falei: – Quantas contas eu tenho para pagar esse mês. Eu juro. Eu juro que eu fiz uma conta ali, assim. Eu falei quantos boletos.

 

Mariana: Você precisou evocar os boletos.

 

Suzane: Exato. Eu falei: – Ah, quer saber o boleto a mais, boleto a menos.  Eu falei: Ah, eu concordo a criança não é racista. Racista é você e toda sua família. Porque, desculpa, você está querendo me dizer que uma criança passou seis anos vivendo no Brasil e ela nunca viu uma pessoa negra na televisão. Num livro. Uma festa de família. Dentro da casa dela. Na rua.

 

Mariana: Que país

 

Suzane: Onde você mora?

 

Mariana: Onde você mora?

 

Suzane: Exato. Assim, desculpa.

 

Mariana: Quantos muros nós? Nossa, você deve gastar. Quantos muros, a gente constrói? Imaginários, concretos, simbólicos. Para você, está ensinando uma criança que…

 

Arlane: A resposta está na própria fala da pessoa. Mas, ela não vem é um nível. É uma cegueira.

 

Suzane: Inclusive, ela ficou ofendidíssima. Oba, e, ficou lá justificando. Eu falei: – Tá bom. Claro, não fui contratada de novo. Não dei mais aulas ali. Mas, lavei a alma porque porra, velho.

 

Mariana: Até porque, né, Suzane? Pensando agora. Ela. Aposto. Olha as partes do meu corpo. Podem fazer. Mas, eu aposto uma parte do meu corpo, que ela estava falando isso para você validar a maluquice, que ela estava falando

 

Suzane: E, a segregação que ela impõe dentro da própria família.

 

Mariana: E, ao você validar ela poder continuar. Ela colocar mais um tijolinho nessa auto enganação

 

Suzane: É

 

Mariana: Para ela viver. Para a pessoa branca, viver nesse castelo encantado que não existe, porque se você desce do castelo é insuportável.

 

Arlane: Como

 

Mariana: É desumanizador

 

Arlane:  Como que a gente tá de tempo.  Tá bom. Tá indo aqui. Para assim, a gente. Meu Deus, a minha cabeça tá fervendo!

 

Mariana: É branco fazendo muita branquice.

 

Arlane: Assim, tem muito. Muitos.  Muitas coisas aqui efervescendo a partir da nossa conversa. Mas, assim quero fazer uma pausa nesse momento. Uma pausa um pouco didática para quem estiver nos ouvindo ou nos assistindo. A gente falou que bastante sobre identidade racial, sobre autodeclaração racial, sobre quem é branco, sobre quem é pardo, né? Inclusive, na fala da Mariana, ela trouxe a questão de ser uma pessoa branca não ser tratar apenas a cor da pele, mas também de valores, de uma visão de sociedade. Enfim, nós vivemos no país que foi colonizado, que tem uma lógica, que tem uma estrutura racial implementada, que nós reproduzimos e reforçamos, consolidamos a todo tempo, né? Mas, para você que está nos ouvindo ou nos assistindo, quero voltar. Quero dar alguns passos só falar um pouquinho sobre a autodeclaração racial em si. Vai que por exemplo IBGE bateu na sua porta ou vai que você vai responder um censo dentro da sua organização, dentro da sua empresa, ou em qualquer outra ocasião que você seja confrontado ou confrontada aí. Ou perguntado, perguntada para falar sobre a sua autodeclaração racial. Importante. Ponto de partida. No Brasil, qualquer que seja a sua identidade, a sua autodeclaração racial. Nós somos pessoas miscigenadas, tá? Para você chegar a uma conclusão de ser uma pessoa x ou uma pessoa Y, né? Conforme a sua autodeclaração racial. Não depende da sua miscigenação. Não depende do seu histórico familiar. Inclusive, cheguei a fazer o meu exame de DNA. Não sei se vocês já fizeram.  Fiquei muito curiosa para saber. Quando eu estava. Quando chegou o resultado eu vi ali um 46% e eu li de relance. Assim, errado 46% europeu. Gente, começou a me dar

 

Marina: palpitação.

 

Arlane: Palpitações. A Minha Vida Passar como um filme na minha frente. Mas, depois eu dei uma olhada era 46% africano. Mas, assim o ponto é tem várias outras porcentagens. Para vocês terem ideia, tem porcentagem de origem japonesa, de origem é árabe, judaica. Ou seja, ainda assim, apesar de toda essa mistura e apesar né? De toda essa miscigenação ali nos meus antepassados. Eu sou uma pessoa negra. Você olha para mim. Vocês olham para mim e vocês leem tá? A Arlane não é uma pessoa preta, né? Ela não tem uma pele escura, retinta. Mas, você tá vendo aqui em mim traços, né? Além de um tom de pele, mas também traços relacionados as características de negritude. Portanto, a soma né? Dessa leitura. O resultado dessa leitura é a leitura de uma pessoa negra. Então, quando a gente fala de pessoas brancas. A gente também olha para essa mesma lógica né? Qual que é o resultado da soma da leitura dos seus traços físicos. A gente usa a palavra fenótipo, mas a gente está falando de aparência. Aparência física né? Também. Quando a gente fala de pessoas pardas nós estamos falando de pessoas como eu, como a Suzane, que são pessoas negras de pele mais clara e de traços de negritude menos intenso. Digamos assim, né? Quando a gente fala de pessoas pretas, a gente fala de pessoas negras de pele mais escura, mais preta, mais retinta. E, tá tudo bem usar a palavra preta porque nós positivamos o seu significado. Nós tomamos posse dessas palavras né? É então de pele mais preta, mais escura e de traços de negritude mais intensos né? Mais demarcados e assim, sucessivamente. Se você olhar para ver a autodeclaração de pessoas indígenas também estão ali dentro as pessoas indígenas miscigenadas. Também, quando a gente fala das pessoas amarelas né? Seja pessoas descendentes asiáticas, por exemplo. Enfim, ou seja, qualquer que seja o seu lugar ali na autodeclaração do IBGE. Não importa se você vem ou não de uma linhagem miscigenada. Digamos, assim. Bom. Para gente finalizar, quero fazer uma última pergunta, então, a gente até começou a falar sobre isso também. Mas, durante as nossas conversas uma palavra que a gente usou foi a palavra racializado. Quem que é racializado? Quem que não é racializado? Quem tem raça no Brasil, gente? Branco tem raça?

 

Suzane: Todo mundo. Todo mundo tem raça no Brasil.  Essa que é a grande pegadinha da questão. Porque se você pergunta, para a maioria dos brasileiros, quem tem raça no Brasil, ele vai falar do preto. Ele vai falar do preto. Ele vai falar do pardo. Ele vai falar do indígena. Ele vai falar do amarelo até de algum jeito meio tímido, porque ele não sabe direito onde o amarelo se encaixa. Mas, ele vai mencionar agora ele não menciona o branco. Ele não menciona o branco. Mas, a questão é todo mundo tem. Branco também é raça. E, se a gente não começar a olhar o branco, enquanto uma raça e o quanto isso também inform. Sobre a branquitude. Sobre raça. Sobre o Brasil. Sobre nossas hierarquias. Sobre classe. Aí a gente não vai conseguir ter essa conversa com a seriedade necessária, porque são todos. Mas, aí é o que que se responde quando essa pergunta é feita.

 

Mariana: Não. Concordo. Essa questão de você se esconder atrás de uma pretensa neutralidade. Para não se elabora. Para eu acho que em última instância. Nossa, essa pretensa neutralidade. Ela traz muitas vantagens porque você pode ser abster do debate.  Você passa por aquilo, assim. Você não se envolve né? Você não se envolve. Você tem esse… essa grande, para mim, uma grande vantagem de fechar a porta e fingir que aquele assunto não existe.  Porque ele não vai vir atrás de você né? Se ninguém vira e fala assim: – Você também tem. Essa questão do outro né? Se tem um outro, tem alguém desse lado daqui. Então, esse silenciamento, para mim, acho que é uma das grandes. Talvez vantagem última, assim, né?  Que o branco que a branquitude de tem. Todo mundo que conseguir passar nesse… nessa, nessa flertas no Brasil. Para mim, é uma flertas né? Porque [pausa] Mas, é isso que eu não tenho fenótipo, quando o teu meio permite. Quando você foi muito bem ensinado. Todas as tecnologias para silenciar essa conversa. Seja quando você diz assim ai não, não sou. Ai tenho uma avó. É para não assumir, assim, que você tá no lugar e que existe um lugar, do qual você ser anunciado, qual você vê as coisas. Então, é isso ou ninguém tem. Porque afinal de contas né? Biologicamente raça não existe ou todo mundo tem. A gente tem que falar sobre isso. E, tem que falar sobre essa tecnologia que foi criada há muito tempo e operando muito tempo para hierarquizar, silenciar, aniquilar, né? Em vida ou concretamente falando. Quando é assim. Quando você confrontado com isso é eu não. Eu, particularmente, não consigo entender como alguém não trava. Quando vê tudo isso né? E, fala nossa: – É isso que se descortina na minha frente. Ou, fico muito perplexa com tudo que a gente cria para continuar seguindo e tal.

 

Suzane: Sabe por que não travam?

 

Mariana: Ou é todos ou não é ninguém.

 

Suzane: Sabe por que não travam? Sabe por que não travam? Porque ser neutro é privilégio.

 

Mariana: Porque é muito. Porque é bom.

 

Suzane: Quando você é neutro significa que você é o padrão. Você é a norma. Se você é um neutro.

 

Mariana: Sim.

 

Suzane: Se você é um neutro. Você não tem raça sentada é a régua.

 

Mariana: Você tem toda a razão. E, você volta para esse lugar muito confortável. É muito confortável.

 

Arlane: Gente

 

Mariana: Pode ser muito confortável.

 

Arlane: Tem uma. Assim, quando a gente vai dentro ali das organizações, né? Nós três trabalhamos com organizações, com palestras. Então, a gente já tá bastante acostumada com algumas as reações. Tem reações que são bastantes comuns

 

Mariana: Parece um roteirinho, né?

 

Arlane: Parece um roteiro. Quando a gente começa a falar de raça. Quando a gente começa a fazer letramento racial. Mas, tem uma delas que eu acho bastante intrigante que é assim: A pessoa abre o microfone. E, tá tudo bem se você é essa pessoa que bom que você tá aqui para a gente conversar sobre isso agora. Mas, a pessoa abre o microfone. ela começa a falar, assim: não porque eu não discrimino ninguém por cor. Eu sou uma pessoa é fui criada para ser uma pessoa para ver todo mundo igual, para tratar todo mundo igual

 

Suzane: Adoro samba.

 

Arlane: É, adoro samba e tudo mais. Inclusive, eu tenho um amigo que é negro e que eu chamo ele de negão, mas é um apelido carinhoso e tudo mais. Ele não se importa com isso né? A gente tem uma relação de longa dat. A gente se ama, se respeita e tá sempre saindo junto, e tal. Eu dou uma pausa, quando recebo esse comentário e aí eu retorno a pergunta para pessoa. Falo assim: Que bom que você tem uma amizade de uma pessoa negra na sua vida. Mas, eu queria te fazer a seguinte pergunta: por que você faz questão ou por que que você acha que importa chamar um homem negro pela cor dele? Chamar um homem negro de negão. Por que que isso importa ao ponto, inclusive, de você trazer isso aqui, para gente, como uma questão a ser validada dentro da pauta, dentro da questão étnico-racial. Você já parou para pensar que não existe. Assim, nunca passou pela sua cabeça. Não existe essa possibilidade de você considerar essa uma questão com o mesmo nível de importância para você chamar pessoas brancas, por exemplo, de branquinha, brancão.

 

Mariana: azedo.

 

Arlane: Não existe esse paralelo né? Pode até ter alguma instância alguma exceção né? Você chamar alguma pessoa ali de branquinha etc., mas, isso não se compara.

 

Mariana: Não é equivalente.

 

Arlane: Não é equivalente né? A questão é tão importante para você que você quer dizer para mim que assim eu não sou racista. Eu, inclusive, [pausa]. O meu amigo negro valida… eu o identificar pela cor dele. Porque que existe diferença. Porque que existe essa disparidade. Então, é isso é daí que a gente começa a entender. Quem é que tem raça né? A pessoa branca, ela não tem raça. Ela é um indivíduo. Ela é uma pessoa. Ela tem a própria história. Ela tem a própria individualidade. As próprias características dela. Aonde quer que ela esteja. Ela está porque ela fez por merecer foi esforço próprio. Agora, quando a gente fala de negros, de pessoas negras. Ah, não tem pessoas negras aqui dentro da organização. Ah, porque elas não são competentes. Elas coletivamente. É uma característica desse grupo. Esse grupo não é competente o suficiente. Esse grupo não se esforça o suficiente. Esse grupo não faz por merecer é não chega na universidade né? Enfim, ou seja, você tem uma atribuição de características a um coletivo né? Você tem uma forma de tratar esse coletivo e de identificar esse coletivo. Como chamar de negão. Como chamar de negona, por exemplo. Chamá-los, inclusive, pelas características da raça, pelas características ali do fenótipo, da aparência. Ao passo que para pessoas brancas não se aplica em nenhuma instância o mesmo né? Então, só retomando a fala que a Suzane trouxe no começo todas as pessoas têm raça. Inclusive, você que é uma pessoa branca. Mesmo que não exista esse reconhecimento verbal né? Ou externalizado existe um coletivo. Existe um conjunto de características que denomina, que exibe, quais que são aí as formas que as pessoas brancas se comportam, tomam decisões. Enfim, vão lidando aí com os desafios e as coisas da vida

 

Mariana: Tem tanta cor temos que mover de tema.

 

Arlane: Não, Mari, pode falar.

 

Suzane: Eu acho que você deu o exemplo muito bom. A gente tem que mencionar né? Porque sempre tem um cara que vai falar do amigo negro, mas também tem uma pessoa que vai falar. Eu, por exemplo, já namorei duas negras. Eu, por exemplo, a minha esposa ela é uma negona linda, sabe? É muito cruel isso, né? O quanto você usa a sua colocação da diferença, porque você tá pontuando a diferença para tentar passar que não há diferença alguma. É muito cruel de certo modo.

 

Mariana: Como duas coisas tão opostas podem estar sendo ditas e quem ouve não vai achar aquilo esquisito é você falar. Você fala eu enxergo, mas depois você vem despotencializa.

 

Suzane: Exatamente

 

Mariana: Então, assim, eu tô falando que eu tô vendo que você tá falando, mas eu já achei um jeito de dar uma volta nisso.

 

Suzane: Exato. Porque eu amo. Porque eu gosto. Porque é meu amigo. Porque a negona. Porque a minha empregada. Porque é quase da família.

 

Mariana: a hora… aí tem tanta coisa neste exemplo que você trouxe. Ele se repete tanto é o meu coração também assim ficou em suspenso. Não foi menos cruel você trazer essa questão da amizade, dos afetos. Mas, quando vem daquela formulação. Não, inclusive, eu tive uma mãe preta. Eu tive uma empregada preta que me criou. Ou, nossa não eu tenho uma. Eu acho que hoje em dia é mais difícil nos ambientes a pessoa falar não eu tenho uma empregada que é negra. Mas, essa da mãe preta e tal ainda. Eu acho que acontece bastante no ambiente, talvez que a pessoa tá em menos pessoas. Mas, essa questão como afeto. Até o afeto. O afeto não impede né? Você, então, você tá dizendo que você tem afeto por algumas pessoas. Tem tantas camadas. Então, você tem um amigo negro. Você tem dois amigos. Nossa, em um país de maioria negra, você tem dois amigos negros. Aí volta para aquilo que você falou da pessoa que diz que viu um. Você fala assim: não eu sou capaz até de ter afeto por uma pessoa negra e mesmo assim não admito que existe hierarquia. Para terminar, ainda tudo isso. Assim, tipo a cobertura do bolo da branquitude. Você. Aquela coisa que a gente tem assim: se eu sou uma pessoa boa, eu não posso ser racista. Então, o que ela também tá dizendo assim: existe racismo aquele existe, mas, eu não sou. Então, todo mundo essa altura admite que existe, mas eu não sou. Então, nossa, o racismo é uma coisa que paira sobre a nossa cabeça. Sobre nós. Não sabemos quem é que reproduz, né? Você vai extraindo assim tá tudo nessas falas que ainda são ditas com a intenção, na verdade, despotencializar o trabalho de que está sendo feito né?

 

Suzane: É por isso que a gente sempre brinca né? Quando vem alguém fala não porque eu já tive uma namorada negra fala. Pô, desculpa, você não leu atualização? Agora, você precisa de quatro namoradas negras para ser considerado não racista falta três. Sabe.

 

Arlane: Tem que trabalhar mais um pouquinho.

 

Suzane: Exato. Atualização 2023. Vamos lá mudou.

 

Mariana: Dá um refresh. Aperta o botão.

 

Arlane: Sim. Gente, assim para a gente fechar essa discussão.

 

Mariana: É capaz da pessoa não entender a ironia.

 

[Risadas]

 

Arlane: Não entendeu. E, começar ativar as buscas.

 

Mariana: Vai mudar lá no Tinder. Não vai entender a ironia.

 

Arlane: Vai entrar no Dengo [aplicativo de relacionamento direcionado para pessoas negras].

 

Mariana: Vai tirar uma foto mais escurecida para dizer que não é tão branco assim.

 

Arlane: Sim. Estou aqui para cumprir a minha cota de pardo.

 

Mariana: Que branco, mas gosta de quatro samba

 

Arlane: Ai gente. Olha assim. A gente falou aqui de afeto e acho que em algum momento a gente falou, por exemplo, da pauta de gênero né? Aí algumas pessoas falam: ah, porque eu tenho uma esposa que eu amo, eu tenho duas filhas, que eu amo, porque eu tenho uma mãe. Enfim, embora também essa discussão sobre relações sociais seja sobre afeto também. Também chegamos aí nessa dimensão. Numa primeira instância não é sobre afeto. O ponto de partida da conversa não é sobre afeto. É sobre relações de poder. Tem uma foto muito emblemática do Tribunal de Justiça de São Paulo. Se você for lá no Google, pesquisa lá Tribunal de Justiça de São Paulo. Tribunal de Justiça, gente, é a instância do jurídico que em tese é a mais próxima do povo, que é aquela que vai resolver as questões mais do nosso cotidiano das nossas relações civis aqui né? Do nosso dia a dia. E, quando você olha para aquela foto ali do Tribunal de Justiça de São Paulo fica muito evidente, muito, muito, muito evidente, que ela está bastante distante né? Que aquelas pessoas ali, que aquele corpo jurídico está bastante distante do povo. Ou, do que é o povo né? 56% de pessoas negras. 52% de mulheres e outras porcentagens aí.  Pessoas com deficiência. LGBTQIAPN+ etc. Então, ou seja, você tem ali um exemplo né? de uma instituição que exerce um poder é sobre o nosso cotidiano aqui, por exemplo, e que está bastante distante dessa realidade, que está bastante ausente, que desconhece com certeza bastante dessa realidade. Estou aqui dando um exemplo só para tangibilizar um pouco do que nós estamos falando.  Nós estamos falando de relações de poder. Sobre quem decide. Sobre quem tem acesso. Sobre quem tem acesso direito.  Quem tem acesso a oportunidade. Quem dá acesso ao direito. Quem dá acesso a oportunidade. Ou seja, é sobre questões um pouco maiores do que simplesmente afeto. E, aí só usando o último exemplo em relação a pauta de gênero. Aqui no Brasil, por exemplo, a gente hoje tem mais de 90% das pessoas CEO, sendo homens brancos. Isso de acordo com a fundação Dom Cabral em um dado super recente, inclusive. Não tem nenhum problema homem branco ser líder, CEO, ser dono de empresa, ser conselheiro administrativo. Não tem nenhum problema. A questão é que nós estamos num país, no qual esse grupo representa apenas 20% da população.  Mulheres negras são a maioria da população brasileira são 28%. Então, são maioria das mulheres e a maioria da população. Ainda assim esse 20% representa de forma muito desproporcional mais de 90% das cadeiras de CEO. Que não são só cadeiras né? É um conjunto que tá definindo, influenciando política, economia, cultura né? Os rumos do país. O futuro do país etc. Ou seja, esses homens quem… quem quer que eles sejam eles também amam suas mulheres. Eles também amam suas mães. Eles também criam, cuidam suas filhas né? Mas, não é esse o ponto de partida. Não é daqui que a gente tá começando a conversa né? A gente está falando justamente relação de poder. Poxa, cadê as mulheres nessas cadeiras? Cadê as pessoas negras nessas cadeiras né? E, assim, sucessivamente. Bom! Acho que nós descobrimos então né? Quem tem raça no Brasil. Só para fechar a questão ali no começo que eu falei sobre a autodeclaração. Você provavelmente notou que nós não temos autodeclaração negra no censo no IBGE. Essa é uma categoria analítica que vem depois então ali somando as populações preta mais pardo. Você tem aí a população negra brasileira. Então, de fato quando o IBGE bater lá na nossa porta não vai a opção de negritude para se autodeclarar. Bom! Por enquanto, é só acho que a gente deixou várias coisas aí na sua cabeça nesse momento. Vamos então para o próximo!

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Referências

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BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, p. 25-58, 2002.

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