O que é Consciência Racial?
Sobre
Na terceira parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre o que é e como seria o desenvolvimento de uma consciência racial.
Transcrição
PROJETO DE ASSIS
Episódio 3 – O que é Consciência Racial?
[Música]
Arlane: Quem é branco no Brasil?
Suzane: Tudo é raça no nosso país.
[Música]
Arlane: Depois dessas discussões bem levinhas que a gente teve.
Suzane: Nada acaloradas
Arlane: Nada acaloradas, depois de ter deixado aí algumas reflexões bem complexas para você desenvolver. A gente vai começar esse último episódio dessa primeira temporada tomando uma cervejinha porque vamos estudar para brindar.
[Todas] Saúde Vida Longa Vida longa.
Arlane: Vida longa para a gente conseguir digerir o restante do episódio.
Mariana: A gente é ótimas garotas propagandas, gente.
Suzane: Exato, patrocina.
Mariana: Nossa, que cerveja será que Machado de Assis bebia? Será que Machado de Assia bebia cerveja?
Suzane: Ah, mas com certeza.
Arlane: Ah, ele era tão legal devia beber cerveja.
Mariana: Já pensou.
Arlane: Hum também foi depois que eu cresci que eu aprendi que Machado de Assis foi funcionário público. Vocês sabem vocês sabem disso agora? E parte do trabalho dele teve relação com a Lei do Ventre Livre, correto? Se eu não engano é isso porque acho que tinha em algum momento as pessoas escravizadas recorriam à justiça para fazer valer a Lei do Ventre-Livre. Gente, se eu tiver errando aqui o nome da lei, peço desculpas, a gente coloca uma nota de correção no site, mas, então alguém ali do setor público tinha que trabalhar, investigar e tomar alguma decisão, no final das contas, se aquela pessoa escravizada se encaixava ali na lei aí do Ventre Livre ou não. Ora, ora, ora, o senhor Machado de Assis estava envolvido nesses processos. Olha que coisa maravilhosa, outra coisa é depois também de grande, a gente estuda sobre a época da Abolição ali sobre o 13 de Maio de 1888 e tem fotos registros do Machado nas ruas do Rio de Janeiro, nas festas, celebrando, comemorando. Eu falo gente por que não mostra essas coisas pra gente no ensino médio, quando a gente tem que ler Machado de Assis isso é uma coisa extremamente grandiosa, além da principal é do fato do Machado ter sido um homem negro, assim, como que não mostram isso pra gente, por que que não mostram isso pra gente. Fico, enfim, mas, à medida que eu conheci isso fiquei muito indignada, mas também muito feliz porque poxa que bom é descobrir isso sobre uma das maiores referências que a gente tem.
Suzane: E curiosamente eu lembro que quando eu comecei a estudar literatura, quando eu entrei na faculdade de história, era senso comum dizer que Machado de Assis foi um homem que não se posicionava em relação à escravidão.
Arlane: Olha!
Mariana: Não basta apagar.
Suzane: Era senso comum porque usavam as obras mais clássicas dele como Dom Casmurro, Memória póstuma para dizer: viu, como ele era totalmente alheio. Eu falo: gente, vocês não estavam… crônicas, gente, atuação sabe é curioso né? E, não à toa digamos.
Mariana: Fico pensando, assim, você historiadora, você acompanha sua obra, suas coisas, eu suponho que você quer falar sobre tudo, você pode falar sobre tudo e aí no futuro alguém vai pegar e vai falar que você não falou sobre o racismo porque em algum momento. São as estratégias infinitas, assim, sabe, então, a Arlane vai fazer um podcast amanhã sobre jujuba, gente. Arlane se vocês não seguem, sigam Arlane nas redes sociais, ela tem uma corg. Eu falei certo, então?
Arlane: Isso.
Mariana: Por que a Arlane gosta, quantos graus de desumanização e despotencialização, sabe gente? É realmente, assim, é, mas, não vencerão, não vencerão.
Suzane: Não, porque cá estamos,
Mariana: Cá estamos com Machado de Assis tá preto, aqui estamos vendo ele.
Suzane: Cá estamos, Cá estamos com Projeto de Assis, isso mesmo. Bom, senhoras pra gente começar esse episódio final, eu quero ler um outro poema de uma outra mulher negra Luciene Nascimento, esse poema eu vim conhecer através da Liliane Rocha e da Drª Fernanda que trabalha com ela, a gente foi recentemente no relançamento do livro da Liliane que agora se chama “Como ser uma liderança inclusiva”. Espero que tenha acertado o título. E, nesse evento de lançamento do livro, Dra Fernanda declamou esse poema ela, ela, eu vou ler tá aqui o poema. Ela declamou esse poema foi uma das coisas mais poderosas que eu vi nos últimos tempos, então, para compartilhar com vocês também, inclusive, estou aqui com o livro. Esse daqui é o livro da Luciene Nascimento se chama “Tudo nela é de se amar”, muito indicamos, com certeza. Vou ler aqui pra agente conhecer um pouquinho desse poema, ele é um pouquinho longo tá, ele se chama “sociedade é construção e o racismo é o cimento”. Então, pega a sua cervejinha aí também para você acompanhar e digerindo as palavras da Luciene Nascimento. Começa:
Nunca esqueci Soninha Freitas palestrando
Em bê-a-bá pra tentar explicar a complexidade do problema do racismo no Brasil. Ela dizia algo como:
Bom exemplo é a construção
Pense em paredes de uma residência
Tijolos formam a estrutura
Com o concreto arquitetura
Ganha formato e aparência
Sociedade é construção e o racismo é o cimento
Componente estrutural
Formador fundamental
Do interior e do acabamento
Nessa fala eu acrescento:
Nossa estrutura social foi forjada no sofrimento
Houve esforço intencional
Atuante, fraudulento,
Apoio internacional à tese do branqueamento
Descolorindo e repintando
Tinta de sangue e caneta
Queremos desconstrução
Porque tentar sugar cimento
Sem romper essa estrutura
É como pôr atadura
Em anos de adoecimento
Educação
Educação rima com coisas muito simples
Rima com escolas falando das coisas nossas
Mas não só em novembro
Rima com aprender que a questão racial
É esforço coletivo,
Que ter medo de polícia não é por acaso
Que a propaganda não é inocente,
Que se a senhora preta não te olha nos olhos pra
Falar com você, Doutor, é responsabilidade
Sua educar seus filhos pra respeitar os meus
Filhos para que as próximas senhoras pretas
Não tenham esse peso no olhar
Sociedade é construção e o racismo é o cimento
Componente estrutural
Formadora fundamental
Do interior e do acabamento
Tem que haver desconstrução
Porque tentar sugar cimento
Sem romper a estrutura
É como pôr atadura
Em anos de adoecimento
Conserto é planejamento,
Consciência e postura,
Análise de conjuntura
Vontade e conhecimento
[Som de assobio]
Arlane: Sim, Luciene Nascimento.
[Risadas]
Mariana: Uau!
Arlane: que, que, que lindo que forte, assim que que poderoso esse poema, me marcou bastante.
Mariana: Amei
Arlane: muito, muito conectado, inclusive, a tudo que a gente tá conversando aqui. Bom, o que vocês acham que é consciência racial?
Suzane: Par ou ímpar para ver quem começa? É, olha, é uma pergunta bem difícil porque eu acho que, eu não acredito que exista uma consciência racial, eu acredito que existam consciências raciais, no sentido, de que é possível ter várias abordagens, que confluem para que você tenha essa consciência, várias abordagens são possíveis, quando eu falo de consciência racial, eu posso falar, por exemplo, que é uma consciência racial para negro, por exemplo, a minha mãe, mulher preta retinta, tudo mais, ela conseguiu uma consciência racial a partir do momento que ela entendeu que o dia que pararam a filha dela que era diplomada que blá blá blá blá blá e trataram ela que nem um lixo, pararam a filha dela, a polícia parou trataram ela que nem um lixo, no dia que a segunda filha dela, ela sofreu violência obstétrica, por enquanto estava grávida, estava lá tendo seu filho, foi quando ela, foi percebendo que cada uma dessas coisas tinha um elemento em comum e esse elemento era pele preta, foi quando ela percebeu pela primeira vez que ela tinha abertura para falar sobre as experiências dela, quando ela era criança, quando ela era adolescente e que ninguém ia rir ninguém acha graça, porque ela sempre falava de como quando ela era criança chamavam de macaca, grudava um chiclete, chiclete, no cabelo dela porque era um cabelo crespo do tipo 4c. Joguem no Google, depois tá tipos de cabelo, cabelo de mamãe 4c, pois bem do tipo 4c de como colavam o cabelo dela, de como humilhavam ela e ela sempre contava isso como se fosse uma piada, teve um dia que ela reparou que não tinha graça e aí ela foi entendendo que ela era uma mulher preta, mãe de mulheres pretas também que estavam ali lidando com isso, lidando com a vida, ela conseguiu adquirir uma consciência racial e ela conseguiu pensar na própria vida, pensar na própria família por um outro viés e isso assim é perceptível na cutes dela, no olhar, no brilho do olho, o quanto a transformou. Então, eu acho que há essa consciência racial para quando a gente fala de pessoas negras, mas a gente tem que falar também de pessoas brancas e consciência racial para pessoa branca ao meu ver e, eu acho que essa é uma das possibilidades, não é a única, é você entender que e aí vai ser polêmico. Eu sei que você não vai gostar, mas você entender que você é racista. É, não, Suzane, claro que eu não sou porque eu sou muito legal, como eu falei eu já namorei uma negra, já blá blá blá. Então, a questão é essa, quando você é uma pessoa branca e você tem consciência racial, você entende que você foi criado forjado, você foi parte dessa construção cimentada através do racismo, o modo como você vê as pessoas é mediado por raça, o modo como você entende o mundo é mediado por raça, e é mediado por uma hierarquia racial, você faz parte disso, você compartilha deste universo, você, muito provavelmente, tem pensamentos e lógicas racistas dentro de você, tendo essa consciência você tem a possibilidade de rever coisas, você tem a possibilidade de se rever, quando você tenta e entra nesse processo de negação, onde o racista é o vilão da Disney, sabe o vilão da Disney, ele tem unhas cumpridas, ele está atrás da moita, ele é super malvado horroroso, blá blá blá blá blá, quando você vê assim, você nunca vai se identificar e se você não se identifica você não se coloca como uma pessoa que é capaz de reproduzir, é capaz de ferir e é capaz de impedir o avanço de pessoas negras. Então, quando eu falo ou quando eu gosto de falar e pedir consciência racial para pessoas brancas, eu tô falando do processo de entender que o racismo, ele constrói a nossa sociedade, você que é branco, provavelmente, é uma pessoa racista e a partir dessa consciência, não é para você ir pra cama chorar, não é para você dar chicotada nas suas costas, não é para você se sentir culpado, não é para você procurar o seu amigo negro e falar a me perdoa, não tem nada a ver com isso, isso é para você, realmente, olhar ao seu redor, olhar a si mesmo e tentar pensar: Legal, fui criado desse jeito, o que, que eu posso fazer de diferente agora para que exatamente os seus filhos, os meus filhos possam ter uma coisa de diferente em relação a isso, então, acho que essas são duas possibilidades que eu creio que são uma, algumas, entre várias, eu não acredito em uma única consciência racial.
Mariana: Que demais isso, que você falou assim é, eu às vezes, nossa, você acabou de resolver uma coisa aqui para mim, obrigada, a minha próxima cerveja da Suzane.
Arlane: mostra, mostra aquele sinalzinho, assim, de carregando, carregando.
Mariana: que importante Suzane porque eu concordo totalmente sobre ter várias formas e acho que só agora com você falando isso, eu pensei nisso, porque eu fico é pensando. Bom, primeiro concordo totalmente, concordo totalmente, assim, eu, você até, você foi generosa, você falou: se você uma pessoa branca, você, provavelmente, é racista.
Suzane: eu sou fofa às vezes, né?
Mariana: É, você foi, você foi, eu acho que é invariavelmente, é muito constitutivo das vantagens que você tira, da ideia de que você é especial e aí claro, se você é rico vai ter uma conotação, se você é classe média vai ter outra, se você tá na periferia é outra, mas você tá falando sobre várias consciências e eu tô aqui pensando mesmo, porque às vezes eu fico pensando, hoje vindo para cá pensando, mas por que tipo, por que tá atrelada essa questão racial, e aí eu fico pensando nas pessoas que dizem, então, por exemplo, lá tem uma intelectual branca americana que vai dizer que as pessoas brancas perdem muito ao viver nesse mundo da mediocridade, Ok concordo, e tem ai a Lia Vainer Schucman, que vai cada vez mais numa pegada mais das famílias e tal tem Sueli Carneiro, que vai, gente, são n’s formas, então, eu, às vezes, fico pensando, assim, é por que, eu sei o meu porquê, mas eu acabei de me dar conta que, o que eu fico matutando não é porque eu não sei o meu porquê, mas a ideia é que tenha um porquê só e de porque eu tô falando de consciência, faz muito sentido, assim, então, o meu pai que é uma pessoa branca e quando a gente conversa sobre racismo e ele vai lá ativar as memórias de juventude dele, de ser uma pessoa que morava na periferia, mas entende que o fato dele ser ruivo e muito branco, porque vem de uma mistura, tinha uma relação diferente com o amigo dele, que ele chamava de negão, e às vezes, vem fala essa coisa: Ah mas chamava de negão, isso não racismo. é uma coisa. A minha mãe, que hoje conversa comigo e minha mãe, então, uma pessoa uma coisa com traços mais europeus e tal e, às vezes, eu tô conversando com ela e ela vai me contar uma história, ela começa aí você não sabe conheci uma moça aí, eu falo assim ela é branca ou ela é preta, ai ela: – você só pensa nisso. Eu falo: não só tô perguntando, porque, provavelmente, para história vai, eu só quero saber, em viés de eu perguntar, se ela era alta, se ela baixa, não é tão simples assim, porque provavelmente a história vai muito diferente, se ela era. Então, o meu ponto é tem tantas formas de ver isso, que eu acho que a gente pensa, que realmente que tem uma, eu acho que até hoje, eu tava pensando que tinha uma que era mais acabada que as outras.
Suzane: A grande iluminação.
Mariana: Isso tá me fazendo aqui pensar, que isso tem a ver com a ideia de que tem um jeito de ser, eu acho que tem coisas em comum, que a gente pode costurar, assim, com as vivências de quem tem e pele preta retinta, de quem tem uma pele, que é uma pessoa negra de traços claros, com certeza, tem coisas comuns, mas como é muito constitutivo da nossa vida vai ter N histórias a respeito, e eu acho que isso é muito rico. Gente, me liguem para falar sobre branquitude não vão encher o saco das amigas pretas de vocês, já vai para um lugar, mas quando às vezes, as poucas pessoas que querem conversar comigo sobre isso, são poucas pessoas, e eu fico às vezes escutando as histórias de vida, de onde vem ter pensado sobre isso é fascinante mesmo, mas, eu acho que assim é isso, qualquer que seja o seu motivo para pensar, qualquer coisa que te trouxe até aqui para tá assistindo esse vídeo, é legal, as histórias são bacanas, as nossas vidas são múltiplas e a gente pode conviver com coisas em comum e coisas particulares, com a história que cada um vai ter, e aí para terminar só queria, queria contar porque desde a hora que você perguntou para mim tem a ver, você falou deve ser difícil, você contou a história da sua mãe e tal é de quando a Sueli Carneiro, você estava comentando no outro episódio sobre as empresas, as grandes empresas, que contratam intelectuais e pensadoras que são negras, e que é não fazem jus, muitas vezes a isso, eu queria evocar aqui a história com Sueli Carneiro, gentilmente, generosamente, pacientemente, aceitou o convite de uma grande empresa, da qual eu estava ali no contexto e ela foi falar sobre, sobre racismo, sobre, gente, com certeza, o tema foi esse, provavelmente novembro e ela foi a primeira pessoa, eu tinha já 30 anos, como é a média das pessoas brancas que se dão ao luxo de viver, às vezes a vida inteira sem pensar nisso, e ela olhou no meu olho e no olho das pessoas brancas que estavam ali e falou mesmo que você não tenha assinado o contrato, que determinou que pessoas brancas teriam vantagem em detrimento das pessoas negras, você não estava lá no dia que esse contrato foi assinado, que esse essa regra foi imposta, mas você se olhando, no meu olho, se beneficia até hoje disso e isso foi, se eu tivesse tomado uma voa no meu útero, não teria doído tanto, foi fisicamente doloroso e certamente eu fiquei algumas noites sem dormir, mas eu considero que eu nasci de novo nesse dia, eu considero que eu nasci de novo nesse dia, e aí eu fiquei pensando você, eu queria, você não precisa da minha confirmação, mas eu queria dizer que é isso mesmo, você se sente enganado, eu, quando daí, eu comecei, peguei esse soco no estômago e comecei a olhar a falar assim, caramba história esse conto de fadas, que me contaram não tem um outro lado e esse outro lado, por mais que possa doer fisicamente no momento, me mostrou uma outra coisa sabe, até então o Brasil para mim era uma coisa qualquer, que não sabia por que eu ainda não tinha ido embora daqui como tantos amigos meus foram e, a partir desse dia a despeito de tudo, eu acho que foi dia, que eu comecei a acreditar, provavelmente, utopicamente, mas espero que não que pode ter uma outra coisa, então, assim ficar lá em posição fetal com culpa e tal, com certeza, porque não vai adiantar nada, não vai resolver nada para ninguém, e assim dá para continuar e tem tanto, tem coisa eu pode ter coisa tão melhor depois disso, assim, dessa mediocridade, dessa coisa, então, acho que a consciência é, para mim, o que eu estava tentando dizer que existem muitas, mas para mim é uma luz assim que de que, de que guia e fala assim: gente, tem tanta coisa maravilhosa, que não foi contada, tem tantas formas de ser, quando a gente escuta Sueli Carneiro, Cida Bento, Ailton Krenak, Alessandra Munduruku falando, Nego Bispo, você fala caramba, tem tantas coisas, tem tantas existências possíveis e a gente ficou presa nessa que é só mais uma, infelizmente, é tão pobre, eu não sei para mim, renova demais assim, me ilumina mesmo.
Arlane: é isso, tem uma fala sua de uma palestra que a gente fez e tinha uma pessoa branca ali que estava bastante, no momento de bastante confronto, que é estava naquela, naquele conjunto de reações, ah porque eu sou uma boa pessoa, não sei o que e tal, você respondeu o seguinte, então, mas, essa conversa aqui é sobre uma estrutura muito maior do que nós e que vem muito antes de nós, achei que isso foi bastante, assim, sucinto porque, inclusive, fez aquela pessoa naquele momento ficar mais quieta.
Mariana: que, é o que você fala sobre estrutura, que é o que Luciene fala sobre concreto.
Arlane: sim, sobre estrutura. Não, não, é.
Mariana: Você me ensinou.
Arlane: Sim, não, não é sobre quando a gente fala de consciência racial, ela vai muito, muito, muito, além do aspecto individual, do aspecto de como a gente se vê no mundo. E aí, o que eu queria dizer, por exemplo, para uma pessoa branca, que esteja nos ouvindo, nos assistindo, é que consciência, a primeira coisa, primeira característica da consciência racial, é você entender que você não é um indivíduo, você não é um indivíduo, você faz parte de uma sociedade, você faz parte de uma estrutura, que é muito maior do que você e que vem de muito antes de você, quer você queira, quer você não queira, quer você reconheça, quer você não reconheça, você não é um indivíduo, as coisas que você tem, as suas conquistas, as suas relações, o lugar que você ocupa na sociedade, é também sobre o seu esforço, não vou, não vou aqui dizer que você nunca se esforçou porque essa é uma grande questão, ah, mas, nossa e o meu esforço, sim tem o seu esforço individual, não duvido disso, tem os nossos esforços individuais, e em somatória numa proporção muito maior, tem as heranças que a gente carrega na nossa sociedade, só o fato de, por exemplo, você não ter o cabelo de uma pessoa negra, um cabelo crespo, isso já te, é isso já é um benefício, por exemplo, que você tem, vou usar uma palavra bastante comum nos dias atuais, mas que exemplifica, que ilustra muito isso, é um privilégio que você tem de não ser por exemplo declinado ou declinada de uma entrevista de emprego ou desrespeitado em alguma situação ou, por exemplo, você está caminhando no Parque Ibirapuera, como eu estive um dia e uma mulher, que eu nunca vi, não sei quem é, simplesmente, chegou e começou a tocar no meu cabelo do absoluto nada, então, assim, a primeira característica da consciência racial, na minha visão, é essa, é você entender que você não é um indivíduo, você está você faz parte de uma estrutura muito maior. Concordo com Suzane e com Mariana que há várias, várias formas de desenvolver essa consciência, vários tipos de consciência, cada pessoa tem a sua trajetória, cada pessoa tem a forma de aprender, a Mariana foi confrontada, por ninguém, menos que Sueli Carneiro.
Mariana: Obrigada, Sueli Carneiro, eu vivo todos os dias tentando honrar Sueli Carneiro, Cida Bento, Arlane, Suzane entre outros.
Arlane: Talvez você não tenha a sorte de ser confrontado ou confrontada por Sueli Carneiro e mas, eu acho que, no final das contas, o resultado da consciência racial, ele é um só, gente, porque assim, se você é uma pessoa que diz que se interessa pela temática, que diz que lê sobre a temática ou que assiste as palestras, minhas da Suzane ou nossas, ou que tá vendo esse podcast ou que já ouviu outros podcasts como Projeto Querino, por exemplo, ou enfim, se você é uma pessoa que de alguma forma se relaciona com esse tema e você ainda não se sente incomodado ou incomodada tá faltando alguma coisa, você ainda de fato não chegou a ponto de desenvolver a sua consciência social, porque para mim isso o resultado da consciência racial do desenvolvimento constante da consciência racial, é você chegar ao ponto de estar num incômodo insuportável, não tem como, gente, você olhar para nossa sociedade, você começar a enxergar as nuances da nossa realidade, entender como de fato se dá a nossa realidade de fato, como se dão as relações raciais, a hierarquia racial, a desigualdade racial no nosso país e você não ficar insuportavelmente incomodado ou incomodada, não tem outro resultado, não tem outro resultado, então, se você está dentro da sua organização, por exemplo, ah você ainda tem questões, aí com ação afirmativa, ah não, mas porque tá tudo bem investir num programa de desenvolvimento, mas, assim no final das contas, o que importa é o mérito individual, você ainda não entendeu, em resumo, você ainda não entendeu, você ainda não de fato desenvolveu uma consciência mais aprofundada racial, acho que Suzane e Mariana deram aqui explicações bem, assim, é, abertas e bem, bem esmiuçadas sobre isso, mas é isso assim não importa qual caminho que você tome, não importa qual livro que você leia, pode ser o Silvio de Almeida, pode ser da Djamila Ribeiro, pode ser quem for, o resultado ele é um, um só, é um incômodo insuportável.
Suzane: Não, só uma um adendo muito básico uma historinha uma anedota. Eu morava em outra cidade da região metropolitana de São Paulo e aí para ir pra minha cidade, eu precisava passar por uma catraca, onde eu passava um bilhete e era muito comum esse bilhete desmagnetizar, aí quando eu passava o bilhete sempre tem um guarda próximo à catraca e desmagnetizar, ele mandava eu desci as escadas e novamente na bilheteria trocar, o bilhete que desmagnetizou, era comum sempre acontecia, eu odiava porque eu estava correndo para pegar o ônibus e a acontecia, pois bem um dia eu estava com um grande amigo meu, branco, e aí ele foi passar e o bilhete dele desmagnetizou, o guarda, outro guarda não era o de sempre, sempre mudava, o guarda olhou para ele e falou pode passar, deixou ele passar e na hora, eu falei caramba, que sorte. Ele olhou para minha cara e falou sorte, ele só fez assim [apontando para a cor da pele], eu olhei para ele, eu olhei para mim, eu falei, oh fuck my god, ele tem razão, eu fiquei chocada, porque eu juro, eu normalize aquela coisa.
Mariana: A catraca.
Suzane: Exato, eu normalize, eu voltar e quando eu vi a pessoa branca fazer aquilo e ser liberada, não precisava descer para trocar, para provar que pagou, eu olhei e falei: nossa que sorte a sua, porque eu não tenho a mesma sorte. Só que ele e eu acho que ele foi a primeira pessoa branca que eu conheci que eu falei assim: esse cara tem consciência racial, velho. Eu acho que nunca antes, eu tinha conhecido alguém. Ele olhou para mim e falou sorte, ele mostrou a próprio tom de pele, porque isso é uma das coisas complicadas, muitas vezes, o que você chama de mérito, o que você chama de sorte tem a ver com a tua cor, tem a ver com a tua branquitude, entender isso, questionar isso é doloroso, porque é muito legal, você falar, eu mereci, eu tive sorte que dia legal, olha como.
Mariana: É muito legal as catracas se abrirem para você.
Suzane: Exato! É maravilhoso, você não precisa descer as escadas, passar pela fila novamente trocar o seu cartão para provar que você pagou alguma coisa, é muito legal, você, simplesmente, resumir tudo em sorte e eu acho que esse é um dos desafios da consciência racial, você começar a questionar a sua sorte, começar a questionar o que você sempre chama de mérito, o que você sempre chamou de ah essas coisas legais que acontecem comigo, sabe, eu acho que aí também é uma boa, eu sempre lembro dessa história.
Arlane: Perfeito, perfeito, vou começar, vou começar, questiona na sua sorte perfeito, é bem por aí mesmo é bem por aí mesmo bom. Para quem ainda, está conosco para quem não fugiu, não saiu correndo.
Mariana: não se escondeu dentro da …
Arlabe: não se escondeu.
Mariana: na mofada, do, da poltrona.
Arlane: Continue conosco que agora a gente vai ler vou compartilhar com vocês uma crônica de Machado de Assis. O Projeto de Assis em homenagem ao nome de Machado, em homenagem ao obra de Machado, a gente estava aqui conversando sobre ele também, enfim, e inclusive, assim tem um pequeno trecho da minha vida, sendo uma pessoa negra sempre acostumada a ser única ou quase única nos lugares, sou formada na Universidade Federal de Goiás, entrei lá já com as cotas universitárias vigentes, mas ainda assim, eu no meu curso de administração de 40 pessoas, tinha talvez quatro ou cinco pessoas negras comigo, mas assim nada se compara ou nada se comparou a primeira vez que eu visitei a Faria Lima, para você que não conhece São Paulo.
Suzane: ih rapaz.
Arlane: para você que não conhece São Paulo, aí já é para você que não conhece São Paulo ou ainda não visitou a Faria Lima.
Mariana: Para você que não sabe que é branquitude, aura do campeonato.
Arlane: Eu costumo chamar a Faria Lima de A Nova Paulista, porque é como se, a Faria Lima é como se fosse o Grande centro econômico do Brasil, é a avenida, na qual estão a sede de grandes empresas nacionais e internacionais, ou seja, tem uma grande concentração de poder e capital econômico ali, político ali também e a primeira vez que eu fui na Faria Lima, eu fui trabalhar numa empresa cuja sede era lá, eu nunca vou me esquecer, gente, a primeira vez que eu entrei no andar daquela empresa tinha cerca de uma centena de pessoas naquele andar, olhei para um lado, olhei pro outro, eu era a única pessoa negra, eu era a única pessoa negra naquele andar, fiquei um uns segundos ali meio parada e na hora que eu olho para as laterais, eu encontro outras mulheres negras estas uniformizadas, no caso, sendo as zeladoras daquele ambiente, daquele prédio, então, assim tem um grande aprendizado aí, para mim, esse foi um grande marco na minha vida, vida, na minha trajetória de desenvolvimento de consciência racial e nesse processo uma das coisas, que eu fui aprendendo mais e que me impulsionou nesse desenvolvimento, foi conhecer mais sobre Machado de Assis, sobre as coisas que a gente estava conversando aqui no começo, inclusive, num período pré-pandemia, eu fiz um curso livre na USP presencial com um professor especialista em Machado de Assis e a minha vontade durante as aulas era de chorar porque assim era isso, ele contando todas essas coisas, todas as coisas que o Machado foi, todas as coisas que o Machado fez que a gente nunca, nunca aprende, nunca soube e nesse curso eu tive o contato, então, com uma crônica que o Machado publicou na Gazeta de Notícias, no Jornal Gazeta de Notícias, no dia 19 de maio de 1888, essa era a próxima data de publicação disponível para o Machado depois do dia 13 de Maio, depois da Abolição, então, se você ainda, por exemplo, é da pessoa que acredita que: Ah, o Machado nunca se posicionou politicamente ou nunca falou sobre questões raciais na sua obra etc, think again, pense de novo, sabe, porque essa, esse, por exemplo, essa, por exemplo, é uma das crônicas é uma das publicações do Machado que, justamente, na forma ácida crítica e sútil, mas não sútil dele, ele fala pra gente sobre a questão racial no Brasil, vamos lá:
Bons dias!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…
– Oh! meu senhô! fico.
– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
– Artura não qué dizê nada, não, senhô…
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Boas noites.
[Pausa]
Arlane: Machado.
Suzane: Só um parênteses básico, ele menciona que Pancrácio tem assim mais ou menos uns 18 anos e que já tá maior que ele, se a gente seguir um pouquinho as datas, 1871 sai a Lei do Ventre Livre, ou seja, Pancrácio tendo essa idade mais ou menos, ele já deveria ter sido livre há muitos e muitos anos, então, fica aí a qualidade de todo o debate e dessa ironia perfeita, que foi feita, e que realmente representa muito do que aconteceu na nossa época e que acontece até hoje.
Arlane: Muitas nuances essa crônica.
Suzane: Oh!
Arlane: Não é para qualquer mente.
Mariana: Se alguém ficou na dúvida, não deveria ficar na dúvida, o que é antirracismo performático, depois que Suzane escreveu perfeitamente, mas, se alguém ainda ficou na dúvida tá aí.
Arlane: Muita. Bom.
Mariana: Muito bom.
Arlane: Olha, a gente deixa esse último, essa última intervenção para você refletir a respeito fico super à vontade, se você é uma pessoa branca para ligar pra Mariana e trocar ideias com ela ou para contatar eu e a para nos contratar, vai estar disponível no nosso site, inclusive.
Suzane: Fazemos festas.
Arlane: Contato para nos levar, pra gente conversar, pra gente levar essa conversa, pra organização que você estiver com este nível de qualidade e de profundidade, mas, assim o convite final fica para que não, não, não deixe essa conversa para aqui, não deixe esse tema para aqui, se esse foi o seu primeiro contato com a pauta étnico-racial, que seja o primeiro de muitos, que venha aí um aprofundamento, interesse até você chegar ao ponto e continuar no ponto de um incômodo insuportável, porque esse é o nosso objetivo e se você nos acompanhou até aqui mesmo que de forma pausada, mesmo que com algumas cervejas, não tem problema, muito obrigada! Eu quero finalizar os meus agradecimentos agradecendo também a Rebeka Cavalcante que fez a nossa analista de pesquisa e comunicação na AGC, que fez pesquisa, que fez roteiro, que fez toda essa fundamentação que a gente utilizou aqui nesses episódios. Agradeço também Ieda Camine que está aqui que cuida de todas as questões operacionais de todos os detalhes para que tudo saia impecável e novamente, agradecer a Suzane Jardim e a Mariana Macario, grandes referências, especialistas na área, que me deram a honra de ceder seu tempo, enfim, seu conhecimento, sua expertise pra gente vir aqui conversar desse tema tão importante.
Suzane: Foi um prazer! Adorei e é isso questionem a sorte de vocês e isso.
Mariana: Obrigada!
Arlane: Até a próxima.
Referências
NASCIMENTO, L. Sociedade é construção (e o racismo é o cimento). Tudo nela é de se amar. Rio de Janeiro: Estação Brasil. 2021
SAAD, L. Eu e a supremacia branca: como reconhecer seu privilégio, combater o racismo e mudar o mundo. Hachette Reino Unido, 2020.
DIANGELO, R. Não Basta Não ser racista Sejamos Antirracista. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Faro Editorial, 2018.
SCHUCMAN, L. V (org). Branquitude: Diálogos sobre racismo e antirracismo. São Paulo: Fósforo. 2023.
A fina ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravatura. Portal Geledés. 14 mai. 2013. Disponível em: https://www.geledes.org.br/fina-ironia-de-machado-de-assis-sobre-abolicao-da-escravatura/