Episódio 2

Pessoas brancas têm culpa?

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Sobre

Na segunda parte da conversa, Arlane, Suzane e Mariana dialogam sobre as reações das pessoas brancas diante da temática racial e sobre que postura elas deveriam adotar nesta jornada.

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Episódio

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Transcrição

[Música]

Arlane: Quem é branco no Brasil?

Suzane: Tudo é raça no nosso país.

[Música]

 

Arlane: Quero começar esse episódio fazendo mais um momento didático, aqui, com você que está nos assistindo ou nos ouvindo. A gente está falando bastante sobre temática racial, sobre o que é ser branco, ser negro no país. Mas, no geral, quando a gente se senta numa mesa de bar para conversar ou quando a gente tá ali na mesa de jantar e de almoço com a família, a gente tem um pouco de receio de falar essas palavras. Quando alguém fala a palavra raça, racismo assusta. As pessoas começam a se entreolhar meio que com medo. Falar branco, falar negro também gera algum tipo de receio, de medo. O nosso convite é para que você se esforce cada vez mais ou para que você se desafie cada vez mais a não ter medo dessas palavras. Raça surgiu, sim, como um conceito entre aspas biológico, entre aspas científico, que visava sim dar uma noção de que os grupos sociais eram divididos no mundo entre características biológicas que significavam uma relação de inferioridade, de superioridade entre elas. Porém, esse conceito e essa percepção, essa noção caiu por terra, por isso que o científico entre aspas, porém raça continua como uma palavra válida, digamos assim, no aspecto social como um conceito social nós continuamos vivendo numa sociedade que é dividida por raças, que tem grupos sociais que são racialmente identificados e separados entre si. Racismo, então, é um fenômeno que explica a dinâmica, a estrutura das relações entre esses grupos, entre as raças da nossa sociedade. Então, não é uma palavra pra gente ter medo. Não é uma palavra pra gente temer. Na verdade, é uma palavra pra gente procurar cada vez mais conhecer. Antes da gente seguir, eu quero sugerir que você dê uma pausa nesse episódio entre lá no nosso site www.projetodeassis.com.br e faça o Teste do Conforto Racial. Ali tem algumas perguntas relacionadas ao nosso dia a dia, como que a gente se comporta, como que as outras pessoas se comportam conosco, interagem conosco e algumas reflexões sugeridas, a partir dessas questões. No final, a gente deixa ali um texto para você com algumas sugestões de leitura de aprofundamento, de provocações, de reflexões.  Justamente pra gente sair um pouco do lugar comum, digamos assim, dessa conversa e de ir derrubando um pouquinho os tabus, quanto a conversa sobre raça e sobre ser uma pessoa branca no Brasil. Depois compartilhe com a gente nas redes como é que foi o seu resultado. Bom, vou partir aqui então para as perguntas pra Mariana e pra Suzane. Vou abrir com o poema de Fernanda Bastos que eu conheci através de Sueli Carneiro. Então, olha só Fernanda Bastos:

 

Aluga-se uma preta

para ama

com muito bom leite, de 40 dias

e de primeiro parto,

é muito carinhosa,

não tem vício algum

e é muito sadia

 

Aluga-se uma preta

para ama

e também se vende a cria.

 

Aluga-se uma preta

de braços fortes e

de abundante leite

seja cativa ou liberta

trabalhadora de noite e dia

 

Aluga-se uma preta

sem filho e que saiba cuidar de menina

enquanto cuida de sinhá

á roda os senhores levam toda sua cria

 

Aluga-se preta

ama-seca muito jeitosa

o leite estancou no peito

assim como os afetos que nos cuidados ela nutria

 

Não aluga-se uma preta

caiu fraca, sem leite

sífilis e tuberculose ela tinha

 

Cobra-se o ordenado da preta

mais humilhação, violência e vilania

O senhor enganado era quem exigia.

 

 

Bom! Depois deste marcante poema quero perguntar para vocês, a partir da conversa que a gente teve nesse primeiro episódio, como que, na opinião e na expertise de vocês, a pessoa branca deveria enxergar a questão racial no Brasil? E Como a pessoa branca deveria se enxergar na questão racial do Brasil?

 

Mariana: Acho que a primeira coisa é se enxergue sabe, tome tento. É difícil até falar depois desse dessa evocação assim. Mas, eu acho que a primeira coisa que eu diria é apenas pare. Eu acho que a gente precisa parar. Não no sentido de se paralisar, mas precisa parar mesmo, porque as nossas práticas. As construções cotidianas que a gente faz são infelizmente muito marcadas por essa hierarquia, que fundou o nosso país, e eu acho que quanto antes. Eu acho não acredito que quanto antes a gente se equipa com maneiras de lidar com isso. Mais cedo a gente consegue começar a construir as ferramentas para desinternalizar. Eu acho que o lugar da pessoa branca não fugir dessa questão. Só encarrando essa de frente, a gente começa conseguir pensar em formas. Acho que tem um lado muito, não que seja fácil, mas tem um lado muito potente assim. Eu acho que essas duas coisas convivem para mim: a dificuldade que te paralisa, quando você admite as coisas, que pode paralisar no primeiro momento, mas também de olhar em volta. Eu acho que esse poema mostra o quanto do que a gente é, foi construído pela contribuição negra, mas uma contribuição que foi explorada, mas também fico sempre tentando pensar em formas de celebrar essa potência, de celebrar essa coisa linda. Então, tô tentando não me alongar, mas é difícil, mas para mim é também assim celebrando quanta potência existe hoje para mim é muito nítido que tudo de mais potente que pode fazer o Brasil ser melhor vem do que as mulheres negras estão fazendo liderando. Sueli Carneiro tudo que eu aprendi com ela, que eu aprendo com você, que eu aprendo com você. Tem muita coisa acontecendo. É difícil, mas também não é difícil. Eu acho que é se recolher um pouco, um pouco não bastante, num lugar de humildade, fica um pouco ali e depois segue, procurando um outro caminho só. Esse caminho também é muito. A branquitude é muito bosta, gente.

 

Suzane: Esse é o resumo.

 

Mariana: É um lugar de bosta. Eu não sei como é que depois a pessoa vai fazer, Suzane, para lidar assim, mas tem hora que só essas palavras, assim, conseguem expressar. É ruim demais é uma vivência muito pobre, é uma vivência, é, assim, às vezes é até difícil dar nome pra as coisas que eu olho assim e vejo. Nossa, porque ela cria uma mediocridade nas pessoas, que se valem disso, que é terrível e essa mediocridade o senhor enganado que depois exige é uma mediocridade do nosso país, quando ele é liderado por essas pessoas. É uma mediocridade da nossa vivência, assim. Então, enfim existe um mundo tão melhor que pode acontecer. Então, acho que é reconhecer. Assim, a gente não vai conseguir falar que tudo mais tem formas de fazer isso, existe muita literatura, existe apoio e existe, tem poucas, mas acho que cada dia mais pessoas brancas que estão se propondo a olhar para isso. Eu acho que tem uma inspiração absoluta da criatividade da potência das pessoas negras que sempre fizeram desse país alguma coisa incrível, mas que a branquitude vem e essas hierarquias tentam despotencializar. Mas, queria terminar falando assim procure outras pessoas brancas para conversar também, porque sempre me chama atenção como as pessoas brancas recorrem as pessoas negras para e perguntarem coisas que estão aí. Então, não é deixar de se inspirar e seguir, mas procurar uns apoios também outras pessoas brancas com quem você pode conversar, porque eu acho que são várias estratégias que vão ajudando a gente há um trabalho. Eu acho que é todos os dias, é constante, quiçá pro resto da vida. Espero que não seja pro resto da vida que a gente vai ver o que a gente vê. Eu tenho esperança de ver nesse tempo de vida ainda muita coisa diferente acontecendo, tenho visto, mas o trabalho de desinternalizar e de lutar, eu acho que talvez seja. Então, não sei, Arlane, se eu respondi, mas, nossa, esse poema mexeu demais, deu uma desorganizada aqui dentro.

 

Arlane: Deu uma desorganizada, Mari

 

Mariana: deu.  Sueli Carneiro, felizmente, sempre faz isso com a gente.

 

Suzane: Bom, eu posso ser polêmica na minha resposta.

 

Arlane: Por favor

 

Mariana: Viemos para isso.

 

Arlane: Viemos para isso.

 

Suzane:  Porque a pergunta que eu mais foquei é como as pessoas brancas devem enxergar a questão racial no Brasil e, honestamente, eu acho que vão fazer porra.  Desculpa o palavrão de novo como eu falei eu sou cristã. Enfim, eu comecei a me especializar em questão racial vai fazer 10 anos, esse ano completam 10 anos, enfim e eu tenho trabalhado com isso em organizações, em escolas e tudo mais já vai fazer uns seis por aí, seis, sete e o que eu tenho visto é cada vez mais pessoas brancas vendo a questão racial brasileira, entretanto, através de um olhar de performance, uma coisa extremamente performativa. Como assim: eu chego num lugar para falar sobre raça raramente alguém me pergunta sobre estrutura, raramente alguém me pergunta sobre hierarquia, raramente alguém me pergunta sobre questão econômica, raramente alguém me pergunta sobre lógicas de poder, mas me perguntam do criado mudo, se pode falar ou se não pode, mas, me pergunta se é preto ou negro. Gente, desculpa de coração, eu não aguento mais responder se é preto ou negro. Gente, tanto faz, é Kléber, escolhe um, tanto faz, eu não me importo certo, entendeu? Não me importo, mas é isso é uma questão de performance. Porque eu percebo que muita gente quer se aproximar da questão racial, mas não exatamente para fazer uma crítica e lidar com como o país lida com raça, eles querem parecer não racistas.

 

Mariana: E ficar confortável

 

Suzane: E ficar confortável.

 

Mariana: Continuar confortável.

 

Suzane: Exato! Eles querem ter literalmente uma lista do que eles não devem fazer, para eles terem certeza que eles vão receber a estrelinha no final do dia. A minha questão é como você deve enxergar, você pessoa branca, deve enxergar a questão racial no Brasil. Você tem que enxergar a questão racial do Brasil como algo que media todas as nossas relações. Todas as nossas relações. Se eu paro para pensar em Justiça no nosso país, isso é questão racial. Se eu paro para pensar em política no nosso Brasil, isso é questão racial. A economia, a lógica de gênero, tudo é raça no nosso país. Ai, nossa, Suzane como você é paranoica, como assim tudo é raça? Tudo é raça. Tudo é raça

 

Mariana: Uhum

 

Suzane: E esse que é o ponto, se tudo é raça, a gente tem que entender que não é só o que você fala, claro, o que você fala é relevante, nós temos sim que pegar e desconstruir o vocabulário racista, que nós aprendemos, mas, honestamente, eu estou pouco me lascando se você parou de falar denegrir, mas você continua sei lá votando em gente que acha que racismo não existe, entende, para mim tanto faz, se você olha para mim e fala ah eu nunca mais usei o termo criado mudo, agora é só mesa de cabeceira, se você apoia sei lá redução da maioridade penal, porque quem vai se ferrar com isso é preto, entende. Então, eu acho que como enxergar a questão racial entendendo que ela vai além de uma performance, ela não é sobre você ser bonzinho, ela não é sobre você ter uma série de amigos pretos, todo batendo palma para você, como você é desconstruído, ela é sobre como o nosso país funciona, é sobre quem vive, quem, quem morre, velho, sobre quem vive, quem morre. Sabe uma coisa muito curiosa. Assim, como eu falei que eu vou ser polêmica, estou nem aí das quantas. Porque é uma coisa muito louca que acontece na minha vida, eu sempre fui pobre fodida, sempre, nunca tive problema com isso, meu pai é dono de boteco. Sabe aquele boteco que vende de ovo colorido e salsicha assim aquela coisa essa? Esse é papai, desde sempre foi, assim. Eu cresci debaixo do balcão, bati microfone, foi mal. Cresci debaixo do balcão, tô viva, ótimo. Quando eu comecei finalmente a alcançar outros espaços, quando eu comecei finalmente a conseguir uma, um avanço econômico, digamos assim, foi a partir de falar sobre questão racial. Mas, eu percebi, na minha vida, que eu conseguia mais trabalho cada vez que um preto morria, cada vez que um cara preto era baleado no Brasil, eu conseguia mais trabalho, eu parei de dormir, eu parei de dormir, eu sentia culpa, eu me senti, senti um lixo. Eu achava que eu entrar lá para falar em cima e conseguir sustentar o meu filho em cima da morte de uma pessoa preta era eu estar traindo a minha família, traindo meus ideais. Eu estou falando isso aqui porque isso foi quando eu comecei a ganhar mais de R$ 1000 no mês, porque a maioria dos meus salários foram menores que isso, eu sempre ganhei salário mínimo na porra da minha vida e eu estou dizendo, porque, assim, eu sentia culpa, mesmo eu sendo estudada para cacete, especializada demais, eu tendo leitura, eu dando aulas boas. Gente, eu dou aulas boas, viu? Eu sou uma excelente professora e eu senti a culpa. O branco não tem culpa, ele está nem aí, muito pelo contrário, ele vê o preto baleado e ele fala aí, mas tudo bem agora, eu falo preto, não falo negro, porque é o correto, então, está tudo certo! Então, eu acho que é isso, sabe, entender para além da performance e entender como essas coisas, elas atingem a nossa vida para além das palavras, para além do você ser legal, não é uma questão de você ser legal, é questão de quem vive, é questão de quem morre, é questão de quem dorme no Brasil, porque recentemente eu não tenho dormido, e você? Sabe.

 

Arlane: Suzane, tem uma coisa, pensando muito na nossa, na nossa atuação, que me deixa bastante intrigada e que eu tenho feito um esforço para relevar, porque é isso, é o preto que morre gente é chamada para ir lá fazer palestra sobre racismo, é alguma coisa que acontece

 

Mariana: Para alguém poder dormir à noite com alguma

 

Arlane: Vem fazer uma cartilha aqui pra gente sobre comunicação, como ser antirracista na comunicação, mas tem uma coisa que sempre pedem é que é a chamada abordagem leve.

 

Suzane: Aí menina. Olha, não é só abordagem leve tem como você ser assim engraçada, eu é

 

Arlane: Dinâmica.

 

Suzane: e eu vou ser engraçada.

 

Mariana: não ser agressivo.

 

Arlane: não ser algo pesado, não ser agressiva, ser algo raivoso

 

Mariana: Deus me livre ofender a fragilidade branca.

 

Arlane: Exato. Assim, com o conhecimento e a experiência que a gente tem a gente sabe que existe um nível ali de maturidade.  Você tem pessoas, tem organizações, nas quais já dá pra gente chegar e ter as conversas reais, algumas, poucas, mas existem, tem umas que sim dá pra gente falar de ações afirmativas, mudar a estrutura de poder, confrontar a cultura de fato. Mas, ainda na grande parte é isso é você levar essa pauta étnico-racial muito nessa linha do que essa abordagem leve para não assustar e para não incomodar as pessoas. Então, você comentando, enfim, sobre essa vivência bastante profunda e bastante complexa, me veio esse pedido que é recorrente para nós, especialmente, para o mês de novembro.

 

Suzane: Uhum.

 

Arlane: que tá se aproximando. O mês da consciência

 

Suzane: é da paciência negra.

 

Arlane: da paciência negra. Exatamente, exatamente. Mas, quando a gente fala sobre como que as pessoas brancas deveriam ver a pauta racial no Brasil, é isso que você trouxe que é uma questão de estrutura, é uma questão de poder, não é uma questão de empatia, de afeto, de amor, de amizade, de coisas legais, não é sobre isso, é sobre poder, é sobre ceder espaço, é sobre ceder poder, é sobre compartilhar espaço, é sobre aumentar a concorrência. Isso não desliga o episódio agora. Continua aqui com a gente.

 

[Risadas]

 

Suzane: Volta

 

Mariana: Segura na poltrona.

 

Arlane: Segura. Uma das grandes preocupações que a gente encontra, especialmente, dentro de organizações e conversando com lideranças é: nossa, mas, vai mudar alguma coisa. Teve um treinamento que eu dei, gente, eu nunca vou esquecer duas sessões para um corpo de diretoria, então, cerca de 10 pessoas, tinha uma mulher, só que era diretora de RH, então, todos homens brancos e tal, cis, heterossexuais. Aí a gente identifica nessas sessões quem que são as pessoas mais detrator, aquelas que colocam um pouquinho mais de resistência, de dificuldade, que querem disseminar um pouquinho a dificuldade e você também contra as pessoas que são mais facilitadoras. Então, tinha um diretor em especial que foi facilitador, gente, durante todo o treinamento, durante toda, todas as sessões, todas as conversas, ele era aquela pessoa que vinha mesmo ali com o conhecimento ainda recente que ele tinha, mas contribuía. Enfim, colaborava para engajar os colegas dele. Nas palavras finais da última sessão, da segunda sessão, ele fala o seguinte: é porque essa conversa que a gente tá tendo aqui, a gente sabe que ela vai mudar algumas coisas, então, por exemplo, aquilo que é nosso hoje não vai ser dos nossos filhos amanhã. Isso foi uma fala que me marcou bastante e ele não falou isso de um lugar de má intenção, mas ele não, com certeza, ele não notou a profundidade desse reconhecimento que ele fez. O ponto é que quando a gente fala da pauta étnico-racial é essa a resolução, a qual esse diretor, esse homem chegou. Não que hoje o lugar que ocupa as pessoas brancas seja delas, não, não é delas. A gente tem todo um histórico aí para provar que mostra, que esse lugar foi um lugar usurpado violentado, obtido as cursas da exploração da escravidão das pessoas negras, do assassinato, do extermínio, das pessoas indígenas, enfim. Mas, o ponto é que sim, uma vez que você olha para dentro das organizações, por exemplo, e você traz mais pessoas negras, você passa a reconhecer que não é simplesmente uma questão de meritocracia, mas é uma questão de acesso histórico, contínuo a direitos e oportunidades, você vai sim aumentar a concorrência, você vai sim tornar mais difícil ocupar, continuar ocupando esses espaços que existem, que são ocupados hoje por pessoas brancas e que significa sim uma cessão e uma divisão maior e mais intensa de poder. Inclusive, a gente usa muito uma palavra, que é usa, que é que é uma palavra muito forte, mas que é usada muito nesse contexto de deixar a coisa mais leve e mais legal e não deveria, que é a palavra empoderar. Gente, como o próprio verbo já nos dá, deixa, o que é empoderar é você dar poder,  é você ceder poder, então, quem na nossa realidade, no nosso sistema, na nossa sociedade que tem hoje condição de ceder alguma coisa, de ceder algum espaço, algum poder, quando a gente fala de relações raciais, a gente tá falando de pessoas brancas, então, é dessa forma que pessoas brancas precisam enxergar a pauta racial. Sim, vai doer, sim, a sua realidade vai mudar, ela não vai continuar sendo a mesma e esse é todo o ponto. Não adianta a gente olhar pra nossa pirâmide socioeconômica, homens brancos no topo, depois mulheres brancas, depois seguidas de homens negros e por último mulheres negras e falar da questão racial como performática. Ai o que que é preto ou negro e tudo mais e achar que tá resolvido. Continuando aquela pirâmide do jeito que ela está. Essa pirâmide que a gente tem que confrontar, ela que a gente tem que mudar de ordem, achatar, é para deixar de existir uma pirâmide não é para continuar tendo uma pirâmide. Enfim, é um processo longo, é uma jornada longa. Outra palavra que a gente gosta e usa muito. Mas, é isso, é essa que é a questão racial, esse que é o cerne da proposta quando a gente fala de equidade étnico-racial e é nesse lugar que você pessoa branca precisa se ver, como essa pessoa que é essa facilitadora, essa promotora, essa impulsionadora e essa pessoa que sim vai ceder seus espaços.

 

[Risada]

 

Suzane: Desculpa. Dadinha dela, dei uma risada enorme na orelha da coitada.

 

Mariana: Caramba, isso aqui, nossa senhora.

 

Arlane: Olha pra gente finalizar, vamos usar aqui um didático de novo.

 

Mariana: Está quente, tá foda.

 

Arlane: momento didático de novo usando aqui uma expressão para facilitar as pessoas iniciantes, novamente, não desliga o episódio continua aqui com a gente.

 

Mariana: Respira.

 

Arlane: Respira, toma uma água.

 

Mariana: você vai aguentar.

 

Arlane: continua.

 

Mariana: vai aguentar.

 

Arlane: Olha só, tem uma um uma expressão que a gente usa, que eu imagino que a Suzane também conheça, que é o teste do pescoço. Vamos deixar a coisa didática aqui para quem tá começando, não tem problema, a gente ensina. Mariana falou aqui no começo da fala dela sobre reconhecimento, sobre pessoas brancas se enxergarem, começarem, parar para refletir, sair do automático, parar de achar que as pessoas marrons [referência da pergunta da filha da Mariana sobre as pessoas em situação de rua] que estão ali no sinal, simplesmente, estão ali porque é normal, porque assim, porque é uma mera coincidência, mas parar para refletir sobre isso, parar para refletir sobre a pergunta que a filha dela fez para ela. Então, uma das coisas que a gente geralmente recomenda nesse começo de jornada para quem agora, talvez na casa dos seus 35 ou 50 anos, está pensando sobre a pauta racial no Brasil é: comece a observar nos lugares que você frequenta, não precisa ir muito longe, no shopping que você frequenta, quem são as pessoas ali junto com você que são as pessoas clientes, quem são as pessoas que estão do outro lado do balcão servindo, quem são as pessoas que só de olhar você já sabe que é o segurança, que às vezes nem é necessariamente o segurança, mas você talvez até confunda com segurança. No seu ambiente de trabalho, alguma vez na sua, ao longo da sua carreira, você já foi chefeado ou chefeada por uma pessoa negra, por uma mulher negra, ou você já chegou a trabalhar com pessoas negras, você já, na organização na qual você trabalha, você tem liderança, tem pessoas negas na liderança, tem pessoas negras ali no escritório, no conforto do escritório não só na loja, não só na operação logística, não só na operação de fábrica, nas coisas que você assiste.  Tem um comentário muito interessante também do professor Silvio Almeida que ele fala assim qualquer pessoa que conheça o Brasil pelas suas novelas, e as novelas brasileiras são bastante populares fora do Brasil, mas qualquer pessoa que nos conheça pelas nossas novelas, especialmente, as mais antigas vai achar que o Brasil é um país de ar europeu, tamanha ausência de pessoas negras, se é que elas estão presentes, se elas estão presentes é isso, é empregada, é o motorista, em lugares bastante específicos e de bastante servidão, então, assim, comece a observar se há pessoas negras na cultura que você consome, nos filmes que você assiste, nas séries nas novelas, nos livros que você lê. Você já parou para pensar na cor das pessoas que escrevem os livros que você lê. Começa a fazer essa reflexão. Eu sei que de ponto de partida já vai ser muita coisa, mas é um

ótimo ponto de partido para começar a atiçar o seu cérebro e você começar a fazer perguntas que talvez você ainda não tenha feito para entender e chegar aqui à conclusão de qual que é qual que deve ser a sua visão, qual que é, qual que deve ser a nossa visão para pauta racial no Brasil, qual que é o seu lugar dentro dessa dinâmica de relações raciais. Era esse o meu último recado. Considerações?

 

Suzane: Amiga, que a gente fala depois de tudo isso, nossa!

 

Mariana: É um silêncio de louvor.

 

Suzane: Não, mas eu acho que só para concluir. Essa questão do teste do pescoço, ela precisa ser feita como movimento inicial, mas eu acho que o segundo movimento tem que ser qualificar esse teste do pescoço e eu sempre falo de qualificar, porque eu nunca vou esquecer na minha vida nunca uma grande empresa super multinacional, riquíssima, me chamou para dar uma consultoria e eu lembro que quem me contratou falou precisamos de um historiadora, porque vamos ter um grande projeto de contratação e nós gostaríamos de alguns especialistas. Eu sou historiadora eu fui chamada. Estava eu e mais algumas outras pessoas negras, cada uma na sua expertise. Aí chegou a liderança, ah liderança, todos homens, tinha até alguns que não eram hetero, mas todos brancos e aí eu lembro muito bem que távamos todas lá e aí um deles um dos líderes, simplesmente, falou: Olha, gente, antes da gente começar, eu acharia muito importante a gente ter algum sociólogo ou historiador aqui para conversar com a gente, porque não é só ser negro que qualifica esse debate e que viabiliza esse tipo de programa, vocês foram atrás de algum? Silêncio, ninguém falou nada, eu fiquei quieta também, eu fiquei esperando alguém chegar e falar: Olá, nós temos uma historiadora aqui, inclusive, ela é mestre em Ciências Sociais. Ninguém falou nada. Na hora, eu só pensei será que eu falo, será que eu vou continuar no projeto, se eu falar alguma coisa, eu fiquei calada quietinha, até que em algum momento eu, simplesmente, falei porque deu minha vez, eu falei: olha, então, para falar a verdade, eu acho que esse projeto de vocês vai ser uma bosta e que não vai para lugar nenhum. Todo mundo olhou pra a minha cara meio, assim. Falei porque desculpa vocês vieram pra sala de reunião sem sequer saber com quem vocês iam se reunir vocês, deduziram que vocês iam se reunir com pretos, e aí vocês vieram aqui.

 

Mariana: Eles estavam aqui só por causa disso.

 

Suzane: Exato. Eu sou historiadora, sou mestre em Ciências Sociais, prazer, Ok, sou formada pela USP, eu tenho várias qualificações e desculpa o projeto de vocês ele não vai sair da página um, obviamente, eu não continuei no projeto. A grande questão é eu poderia ter continuado no projeto, se a pessoa ao meu lado que sabia qual era a minha qualificação e que era branca e que não corria risco algum erguesse a mão e falasse ela é historiadora. Mas, sempre deixam pra gente e a gente perde com isso. Então, eu acho que esse recado é importante fazer o teste do pescoço e qualificar esse teste do pescoço num segundo momento, para você entender também o que você pode fazer ali naquele momento, onde você sabe que você não vai perder, mas que talvez a pessoa preta perda. Cara, eu perdi um trampo bom viu, a empresa era legal, mas, honestamente, eu não faço questão de trabalhar com aquela galera, não. Ó, eu não vou falar o nome da empresa, vocês, todos acharam que eu ia, né? Não, não quero ser processada, não hoje.

 

 

Mariana: Don’t today

 

[Risadas]

 

Mariana: Eles também, assim, não, não sei como foi para você na sequência, você está aqui contando, mas, assim, você falou, você ainda deu a chance deles corrigirem. Você entende? Acho tem, tem uma coisa que sempre me pega, sempre me pega, que é quando a crítica é colocada, porque você escolheu falar, você foi extremamente generosa de certa forma, porque você podia. Eu acredito nisso, eu sei assim, eu acho que a gente tem uma, existe algo que parece muito natural, que é a ideia de que o conforto sempre precisa estar instaurado e a gente sabe em favor de quem, é eu vou falar a verdade, eu não, eu vou tentar não ser hipócrita é muito foda, é doloroso, quando se eu tivesse lá com você nessa mesa tá? Em qualquer posição, não estaria na tua, mas das pessoas brancas que estavam ali ou do RH, que tá assessorando, é muito difícil quando você é confrontado com essa realidade, é um soco no estômago, mas você não precisa morrer com um soco no estômago, você vira e fala assim: Ok, nossa, caramba, mandamos muito mal, que merda o que a gente fez, mas você estava na sala, você estava lá, sabe, você ainda estava dizendo, assim: gente, oi, eu sou historiadora. Nossa! Assim, lamento profundamente, Aí de preferência não fica se justificando, dizendo por todos os motivos pelo qual, bla bla bla, não, não vamos pra reparação, vamos pra reparação, lamento dei um fora aqui, você é historiadora, que bom que a gente tem uma historiadora aqui, então, não tô querendo ser poliana e dizer que sempre dá para salvar. Porque eu do jeito você tá contando eu concordo estava cagada, estava desde o começo, mas eu só queria trazer esse ponto, que é, assim, Acho que Arlane passa muito por isso, você também nas tuas consultorias, eu passei, Eu e Arlane, quando a gente tá junto, a gente tenta trazer isso que é o seguinte: quando alguém está te contando que você fez merda está te dando uma chance de você reparar aquilo, então, eu tento trazer, evocar esse espírito, talvez sendo utópica, esperançosa demais, dizer assim: gente, agradeça porque a pessoa podia ter virado as costas, nem ter te contado que você falou merda, ela ainda estaria bem justificava, porque suponho que não foi a primeira vez que você passou por isso.

 

Suzane: Quem me dera.

 

Mariana: A pessoa ainda está te dando a chance, ela ainda tá ali com você.  Arlane, quando ela fala tipo, assim, não, você mandou mal, por exemplo, essa história que você contou, eu precisei que você contasse umas três vezes para entender o que você estava falando assim. Então, assim, você ainda está tendo a chance de ser confrontado com aquilo, você tá tendo a chance de reparar aquilo, sair desse ego de desculpar, justificar e vamos para reparação, a gente ainda pode reparar, às vezes, não dá mais para reparar, mas, às vezes dá, então, é tentar construir um lugar que não é o do conforto de não ser julgado, de ficar nesse lugar do eu eu eu, performático, deixa eu dormir hoje feliz e falar assim: não, a gente tá construindo algo coletivo, eu ainda estou tendo a chance de ser aceita num lugar de construção, porque tem pessoas que nem querem mais construir com as pessoas brancas, e eu nunca as criticaria. Arlane, me mandou um vídeo esses dias, que a menina branca falava assim: o que que você pessoa branca que tá ofendida com as pessoas negras, que não querem estar mais com você, não é sobre você, necessariamente, o que que as pessoas brancas fizeram para que as pessoas negras confiassem nela, muito pouco. Então, vamos daqui para frente, vamos, vamos sair desse, desse eguinho aqui que é tão confortável e tão floquinho de neve, vamos para uma construção coletiva. Podia, A sua fala foi uma fala que podia ter dado a chance das pessoas, ela deu a chance das pessoas fazerem, talvez, fazerem diferente, mas, não a branquitude quer se preservar, quer preservar sua autoimagem, é isso, é, é muito triste, assim, porque a gente podia estar fazendo tantas outras coisas, estamos aqui fazendo, estamos aqui fazendo, estamos tentando criar uma coisa que até hoje a gente não viu.

 

Arlane: Sim. As pessoas ficam no que eu chamo de cantinho da reação, ficam ali presa naquele canto e, até fazendo conexão com, que adorei, porque isso tudo se conectou ao título do episódio que é: pessoas brancas são culpadas? Geralmente, quando elas chegam nessa conversa aqui, quando elas começam a assistir um podcast como esse, por exemplo, uma das primeiras reações que a gente vê é a sensação de culpa e assim, eu acredito que até faça parte do processo e tá tudo bem, porque realmente não deve ser muito fácil você começar, quando adulto, a rever sobre a história do Brasil, a de fato aprender sobre a história do Brasil e não se sentir de alguma forma: Poxa! Como assim os meus antepassados, as pessoas, todos os fenômenos que permitiram e que permitem que eu esteja onde eu estou, que eu seja quem eu sou, Poxa, tem um histórico ali de muita injustiça, de muito massacre. Mas, assim, uma vez que você tenha essa reflexão saia do cantinho da reação, saia do cantinho da culpabilização, não é, nunca foi e nunca será sobre culpa. Tem três coisas que eu gosto de falar: primeiro é sobre reconhecimento que nós já falamos aqui, segundo é sobre responsabilidade, então, a responsabilidade veja a questão da desigualdade racial não é das pessoas negras, não é das pessoas indígenas, não é das pessoas negras e das pessoas indígenas, ela é, primeiramente, das pessoas brancas, então, responsabilidade sobre o que precisa ser mudado, sobre o que precisa ser endereçado, e a última coisa é você reagir, é você fazer alguma coisa, você agir, levantar a bunda da cadeira e começar a fazer alguma coisa em todas as dimensões da sua vida individual, profissional, em todas as dimensões da sua vida, então, assim, não é sobre culpa, nunca foi sobre culpa, sim, leve o seu tempo aí para digerir um pouquinho.

 

Mariana: liga para um amigo branco, ao invés de ligar para uma pessoa preta. Aí você conversa, gente, liga para mim, pode ligar, aí depois a gente vai pro próximo trabalho.

 

Arlane:  Sim.

 

Suzane: Não liga para mim, não estou cansada

 

Arlane: Não, para mim, pra Suzane, não. Faça essa reflexão

 

Suzane: A não ser que você me pague aí ok, aí beleza

 

[Risadas]

 

Mariana: Bem.

 

Suzane: É, é.

 

Arlane: Sim. Aí nós vamos, aí nós vamos. Mas, é isso acho que demos os nossos recados. Vamos então pro próximo episódio.

 

[Música]

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Referências

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

MCINTOSH, P. White privilege. Unpacking the invisible knapsack. Gender through the prism of difference. Peace and Freedom v. 235, n. 8, 1988.

Instituto de Referência Negra Peregum. Projeto Seta. Percepções sobre o Racismo no Brasil. IPEC, 2023.

DIANGELO, R. Não Basta Não ser racista Sejamos Antirracista. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Faro Editorial, 2018.

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva SA, 2016.